quarta-feira, 22 de julho de 2009

Mais uma cimeira, e p’ra pior já basta assim…

A presença do chefe de estado angolano na cimeira do G8, a decorrer em Itália, tem sido muito badalada. Há uma toada aparentemente consensual quanto ao relevante significado de o país ser chamado a participar no já aqui designado “areópago dos ricos e poderosos”. De alguma forma compreende-se o nacional entusiasmo, algo deslumbrado, menos claro é que se adivinhem inocentes benefícios e decididos contributos para acabar de vez com a pobreza. Angola fica na chamada África útil, a do petróleo, diamantes e demais utilidades, o que a coloca na rota do investimento internacional mas não lhe garante o investimento humanitário, desde logo porque o crescimento económico registado nem o convoca. O desenvolvimento a que se tem assistido no pós-guerra enuncia uma hipotética melhoria da qualidade de vida dos angolanos, sendo que aqui, como em todo o lado, a hipótese de melhoria não toca a todos. A crueza da estatística dos 2 que comeram 1 sardinha é universal, o caso complica-se quando há três ou quatro bocas para a tal sardinha…

Acrescente-se ainda que no clube dos ricos e poderosos uns “brancos louros de olhos azuis”, esta piada brasileira tem que se lhe diga, congeminaram umas traquinices muito liberais e puseram à solta uma crise mais liberal ainda, tanto que o mundo ficou em pantanas. E porque a pobreza também é dada a liberalidades, infecta a torto e a direito, cavalga no dorso da cobiça de mão dada com a ganância e não é de se deter se não for travada, a melhor forma de lhe meter o freio é pô-la a descoberto, escancarar-lhe os podres, sem cuidar de aparar os respingos. E quem puder que se cuide. Angola não fugiu à regra, apanhou por tabela com a crise, de raspão, mas não foi capaz de ter mão no desaforo da pobreza, e chovem tinidas críticas nos telhados, de vidro, do areópago local.

Vem isto a propósito da enunciada reunião da ordem internacional e de como o mundo anda à mercê da internacional desordem. Desde logo na intoleravelmente injusta repartição da riqueza planetária e da insustentável concentração da redistribuição desigual, de que o continente africano é irrefutável exemplo e de que a África austral não fica atrás. Mais do que as vozes da acusação viciada que se arvora juiz em causa própria, a modos de quem não vê uma tranca no olho mas enxerga um argueiro no olho do vizinho, os números que a pobreza denuncia falam a voz da razão. Não se podem ignorar os marcadores da pobreza, e o agregado índice de desenvolvimeno humano engloba uma série de indicadores que permitem medir os efeitos das já citadas desigualdades. Um recente estudo, iniciativa de uma universidade privada, sobre a realidade angolana, pese embora a insuficiência de ferramentas estatísticas fiáveis, veio firmar o que por cá vai correndo à boca pequena: a muita pobreza num país muito rico. Sendo que a média dos países do sul já é deveras preocupante, o caso angolano obtém resultados ainda mais gravosos em grande parte dos desempenhos avaliados. Em consequência, e em abono da liberdade de imprensa, registe-se, um semanário local fazia título de primeira página: “Angola é campeã mundial da desigualdade social”. Limito-me a citar.

A razão, porém, porque me detive nas anteriores considerações prende-se com o amargo de boca que se me ferrou quando no último fim de semana fui a Sangano, magnífico recanto de praia no magnífico parque nacional da Kissama, cujas belezas não me canso de desvendar. De Sangano retenho a curva arredondada do areal aninhado aos pés da majestosa falésia que se alteia emplumada de penachos de araucárias a ver o mar estendido em rebrilhos de azul, levemente pintalgado de verde água quando o sol rompe o véu acinzentado do cacimbo. Arriba-se à praia pela picada que rasga a arriba de terra vermelha. Logo à chegada descortinam-se poisos de amesendação e repouso, restaurantezinhos de colmos e madeiras e bangalós de construção tradicional arrumados por entre o arvoredo esparso. Em contraste, o aglomerado de escuras cabanas de pau-a-pique entremeadas de estendais de peixe, e os panos coloridos das mulheres que se afadigam na algazarra dos putos que enxameiam de correrias e risos a aldeia dos pescadores. Mais abaixo, na beira da praia os homens e os barcos da faina. Dizem-me que por aqui permanecem desde sempre, o sempre que a guerra tenha permitido, consinto, e a quem a paz terá anunciado promessas de aqui continuar. Não sei. Só sei que desta vez da aldeia encontrei o sítio, restolho de restos e de cinzas. No areal restam poucas cabanas. E há na beira da praia um inusitado movimento, barcos que chegam, peixe que se descarrega e amanha, homens, mulheres, criançada em movimento, o trabalho segue indiferente ao cirandar dos poucos turistas que se afoitam na areia, excepção feita aos espontâneos acenos de cortesia. Este povo é afável por natureza. O sorriso é fácil e a saudação é imediata. Não responde ao cumprimento com um silêncio de cara fechada.

Voltando à aldeia, claro que estranhei a ausência dela, e logo perguntei o porquê do sucedido, cavaqueira a acompanhar o primeiro café da manhã, a resposta evasiva, ninguém a mostrar-se muito interessado no assunto, a mudar de conversa. Mas lá fui sabendo que a aldeia ocupava terrenos entretanto vendidos, e que teve de se mudar lá mais para cima, na entrada da falésia. Se à chegada o facto tinha passado quase despercebido, na saída só havia olhos para a terra povoada de casas de chapa de zinco, paredes e telhados muito brilho inox, a dar ares de espaçosas e a prometer interiores bons para fritar gente quando o calor apertar. Quero crer que se trata de solução temporária. O tempo o dirá.

Luanda, 9 Julho 2009

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A foz do Dande nas terras do Bengo

Viajando pela saída norte de Luanda atravessa-se o município de Cacuaco, zona de instalação preferencial de empresas, qual cintura industrial, e de misérias , qual cloaca habitacional. Até chegar às imediações da lagoa de Panguila, e da povoação, fazem-se uns tantos quilómetros numa espécie de estrada que há-de ser uma “via expresso”, mas que por enquanro, e desde há muito, vai sendo um esgoto de trânsitos mil em permanentes entupimentos, bordejada pelo cenário abarracado encharcado em imundícies, restos de todos os despejos onde os putos brincam e catam despojos, com mar ao fundo! Do mal afamado bairro da Boavista, ao não menos famoso Roque Santeiro, empinam-se nos morros a-ver-o-mar os casebres donde escorrem inomináveis lixeiras, ao dependuro, que as enxurradas da época das chuvas hão-de desabar, e o desespero há-de ser grande e maior há-de ser a capacidade de resistir. Nos entretantos sobram doenças e marginalidades, é zona perigosa, e o imenso musseque vai-se esparramando até onde a vista alcança, e milhares de almas, força de trabalho, se acantonam no desditoso belo território de Cacuaco, à beira mar plantado.

Nesta terra a mãe natureza esbanja mimos , adoça o clima e explode em meneios de beleza, tenho comigo que há-de ser, também há-de ser, para mitigar em afagos as mínguas que dos filhos não consegue tolher, só pode aliviar. Tanta grandeza há-de ser para lhes afagar as mentes e sossegar os corações. Só pode ser.

Cerca de trinta quilómetros e duas horas depois – no regresso uma hora haveria de ser um sucesso, viagem rápida, correu muito bem – passa-se o posto de controlo de fronteira – reminiscência do tempo de guerra, da era colonial? -, cada vez menos controlador e mais de proximidade policial, e entra-se na província do Bengo. O destino desta vez é a Barra do Dande, pequena, aparentemente, povoação pesqueira na foz do rio.

A estrada asfaltada com todos, sinalização, marcações, bermas e protecções, esgueira-se por entre a chana, savana de capim rasteiro a ondular ao vento num amarelo de seara madura, os garbosos embondeiros fazem-se aparecidos mas não se misturam com o mulherio, as palmeiras matebas lhes chamam, estatura meã, farfalhudas e empinocadas, que se vão espalhando em pequenos bandos até se organizarem nos palmares que se estendem à beira-mar. Pelo meio também saem a terreiro os penachos das araucárias, altas e vistosas, menos dadas a ajuntamentos que as moçoilas matebas.

Feita a ponte que atravessa o rio, a estrada segue rumo ao Ambriz, mas o destino era mesmo ali ao pé, a praia que emoldura a foz. O complexo turístico “Paradíseos”, talvez invocação de paradisíacos lugares, dispõe tendas e bangalôs, casitas de madeira cobertas de colmo, rentes ao palmar, e um simpático barzinho palafita repleto de rapazitos fardados a preceito que distribuem bebidas pelas mesas de baixo das palmeiras espalhadas no areal. É tempo de cacimbo, está frio para praias, só os pulas (os brancos) não se dão bem conta disso, porém a praia está quase deserta. Na caminhada à borda d’água, sempre vigiada pelas palmeiras a abanar na brisa, muito juntas e entrelaçadas de árvores outras que se lhes enroscam nas raizes e vão trepando outras folhagens, lavam-se os olhos na quietude da paisagem, são só paradíseos à nossa vista…. E do cimo duma das falésias os olhos vão-se esbugalhar de espanto, tal a grandeza, a imponência, o sem fim da beleza que se nos oferece. Então sentimo-nos grão de areia, coisa nenhuma, no regaço desta portentosa mãe natureza, onde a melodia do silêncio se faz ouvir. E onde um altaneiro embondeiro cruza e descruza os braços a mirar de cima o azul rematado de fitilho branco da baía que recebe o Onzo, o rio que ali se desagua. Duas araucárias amarram-se, vistosas, num pequeno patamar adiante na escarpa, as outras, as demais árvores ou arbustos, erguem-se acima do capim baixote em arranjos harmoniosos, e discretos para não ofuscar a pose do macho embondeiro.

Inversão de marcha para alcançar o poiso destinado para almoço, um agro-turismo algures nas redondezas. Encontrada a picada que vem à estrada, e após uns bons metros sacolejados à maneira, o restaurante-esplanada oferece-se erm jeito de miradouro, e que mirada!!! Uma vastidão , literalmente a perder de vista, pontilhada de arvoredos e esparsos povoados, aqui e ali pintalgada de traços e pontos azuis, em tamanho grande, que é como quem diz o rio a mostrar-se por entre nacos de verde e as lagoas a rebrilharem ao sol na campina africana. Também este, o Dande, se espraia em curvas voluptuosas, inesperadamente quase uterinas, e se solta em lagoas espaçosas onde flutuam umas também inesperadas ilhas, mais ilhotas de verdes e musgos, na aparência. Enquanto o almoço uma, bonitinha e bem redonda, mudou de sítio. Encostou-se à margem da lagoa.


Luanda, 30 Junho 2009

segunda-feira, 29 de junho de 2009

O insustentável peso da pobreza

Há dias em conversa com um responsável de um gabinete da “ajuda internacional” sediada em Angola, e dado o contexto profissional da ocorrência, pasmei ao ouvir dizer que os doadores tradicionais estão progressivamente a abandonar o país, agora não mais em situação de emergência, a carecer da ajuda humanitária de que beneficiou em tempos de guerra. E o argumento será o de que já não é necessário, o país é rico e tem muitos recursos, e a pobreza já não mora aqui. E, ouvi ainda, não falta quem, vivendo em Luanda, confirme esta desnecessidade, argumentando que poderá haver algumas bolsas de pobreza, talvez nas periferias, nada porém que justifique a por alguns alardeada miséria generalizada. Essa, ou dessa, já não há. Estamos a falar de estrangeiros residentes, quiçá representantes de organismos ditos humanitários, empenhados no processo de desenvolvimento em curso, o negócio da reconstrução, digo eu, processo esse que, pelos vistos, não põe as pessoas em primeiro lugar (??!!!) como no tal período da emergência. Não consegui calar o pasmo, apesar do melindre da situação, , e perguntei se esse “já não há” é eufemismo de discurso oficial para afinarem todos pelo mesmo diapasão, os de fora e os de dentro, porque o que há até um cego vê, a não ser que seja um que não quer ver. E a resposta veio pronta, não, dependendo do como-e- onde-se-vive e do com-quem-se-convive, as pessoas não se apercebem da pobreza que anda à solta!!? Estamos conversados.

Da janela do ar condicionado, trancado, basta entrar na ilha de Luanda, a mítica e efabulada ilha de todos os contrastes para nos bater de frente a emergência do insustentável peso da pobreza. A ilha deprime-me. A ilha assusta-me. A ilha inibe-me, Não deito a cabeça de fora nem ponho o pé no chão. A eito não, só nos sítios onde-como-e-com-quem. E se há sítios a não ficar nada atrás de qualquer riviera que se preze é na ilha. E se há requinte, qualidade, bom gosto e diversão, e uma carteira recheada também se recomenda, é na ilha. Já por lá andei e gostei. Não muito, porque não sou muito in, porque não ando a esfarrapar dinheiro a rodos, e porque não gosto, já o disse, de andar cá fora.Gosto mas é depois de estar lá dentro, nos sítios. Onde a noite se aconchega no sussurrar das palmeiras a debruar os tablados donde se escoa a música-ambiente que adoça os brilhos do mar ali ao pé, e a brisa sopra os penachos dos coqueteiles das petisqueiras. Com estacionamento vigiado, sem o indizível bafo de todos os detritos, nem a comichão da lama e da poeira nem a impertinência da pedinchice que nos encabula e entala, e por ser tanta intimida, e pode atacar, que a pobreza não é apenas sina de desgraçadinhos, é também forja de vícios, e o de roubar e matar não é só fumaça de loucos. É a desavergonhada miséria, galdéria destravada a desbundar maus costumes. Insensível à beleza da ilha, a espatifar a floresta que só estorva e a conspurcar as areias que não seguram os casebres em noites de calema, a rondar manhosa as casas dos ricos e a farejar o golpe nos sítios onde eles se poisam.
Nas raizes dos “ilheus” há kiandas que se banham no mar em noites de luar, há bairros que se afundam no areal sobrante da desmatação urbana, há velhos encarquilhados na desmesura do nada-é-como-era e meninos largados no vozeirão do agora-cada-um-que-se-amanhe. E numa noite de calemas foram engolidas duzentas habitações, calamidade natural, e o bairro teve de ser evacuado e o povo foi para um abrigo temporário anunciado, campo de tendas a milhas dali, até que se lhes reconstrua outra vida, noutro sítio. E depois veio uma noite de negligência de vela mal ardida e sessenta residências arderam e o povo teve de ser evacuado e foi para um abrigo temporário anunciado, et ceatera, até que….

A ilha vai mudar, o anúncio é oficial, a ilha vai ser o sítio mais bonito de Luanda, moderno, arrojado, poiso de todas as vanguardas, e “as mamãs da ilha nada têm que recear”, master dixit. Hão-de voltar e tudo vai ser como dantes. A cada um o seu sítio. Pois então.


Luanda, 15 junho 2009

Por Calandula a Malanje ...

O fim de semana prolongado convidava ao passeio fora de portas, porém, a alegada sobrelotação de hoteis e quejandos, nos destinos mais cobiçados, forçou a saída antes do raiar do sol, num ir e vir de assentada a terras de Malanje.

Em tempo de cacimbo os dias são bem mais curtos, daí a partida de Luanda pelas cinco da manhã, noite ainda, rumo às quedas de água de Calandula, na província de Malanje, sendo que o regresso já então se adivinhava noite fora, pois que pouco depois das seis da tarde anoitece e viajar de noite é acto aventureiro. As estradas não são iluminadas, claro, nem a iluminação pública, que a não há, se incendeia a torto e a direito pelas larguezas deste país imenso e despovoado, onde aldeias de palhotas ou de blocos de argila, amarela e vermellha, a dar à paisagem uns esbatidos de côr por debaixo das cabeleiras escuras dos colmos dos telhados, se aninham no mato, o capim ainda alto na chana e a floresta a reverdejar intumescida das chuvas que se foram faz pouco. Do onde-a-onde das sanzalas ao faz-de- conta de vilas e cidades, a maior parte estropiadas, mutiladas de guerra embrulhadas no manto andrajoso do musseque de pobrezas sem fim, acender públicos luzeiros para alumiar forasteiros em trânsito não é necessariamente a primeira necessidade. A energia eléctrica, a desejada, quando aqui chegar há-de encontrar melhor poiso em hospitais, centros comunais, escolas e demais, antes de desaguar em néons achinesados a semear honguekongues de imitação que têm tudo a ver com o que não combina com estas terras nem com a sua tradição. Passe o preconceito cultural que a segundo plano vota o conforto das lâmpadas, salvaguardado o direito ao bem-estar das gentes que aqui vivem, não há luzeiro mais belo que uma noite de luar, no mato. Sobretudo para quem está de passagem, viajando…

Viajando, e do perigo anunciado de o fazer de noite se precaver, pois as possibilidades são infinitas: ele são os carros, ligeiros ou pesados, mesmo os pesadíssimos, que circulam sem nenhuma ou muito fraca luz, e quando não em contra-mão; ele são as avarias sinalizadas com montinhos de predras e ramos, e quem os vê?!!; ele são os inesperados e lunares buracos que podem aparecer, e quando menos se espera; ele são os peões solitários que deambulam estrada fora, fora das bermas, quantas vezes fora de toda e qualquer ajuizada prudência. Para não falar no risco permanente de se apanhar com a insana condução, assassina, em excesso de velocidade e estado de embriaguez, tudo a subir à medida que a noite sobe. Depois, ou antes de mais, ao aproximar das povoações , há carreiros de gente, homens no regresso do trabalho, mulheres saídas das lavras, cachos de putos a serigaitar, tudo caminhando na beira da estrada. E umas trouxas de cabras enroladas a dormir também lá podem estar, na estrada, sem luz. E desta viagem me ficou a imagem de N’Dalatando, cidade que antes da guerra era jardim, hoje capital de província, ainda sob o efeito pós-traumático, macilenta e mal trajada, muito cheia de avenidas alcatroadas e desguarnecidas, à espera de melhores dias, que na noite se adivinha luzindo como uma procissão de velas, umas dezenas. E gente, muita gente a encarreirar estrada adiante.Quando crescer esta cidade vai ser grande. Hei-de voltar para ver. E vai valer a pena.
Como valeu a pena dar um salto a Malanje, cidade ainda modesta, porém formosa e aperaltada. A chegada faz-se por entre um renque de árvores, talvez acácias aparentadas, meote branco, qual estrada-alameda, e não se avista o musseque, apenas uns bairros de casitas alinhadas, pintadas de fresco algumas, desenxovalhadas todas. Estranhamente, e com deliciada surpresa, o lençol esfarrapado e pardacento, pejado de lixo, viveiro de “macrobianas” misérias, não se faz aparecido aos olhos do visitante. Na praça central, belos edifícios da era colonial em esquadria, estende-se um gracioso jardim, cujas pérgulas de fulvas buganvílias espalham beleza e sombra. Gostei desta Malanje, flausina, sem ar de posses mas bem apessoada. Peneirenta bonita. É de voltar. E percorrer a preceito.

Calandula, pequena vila junto ao rio Lucala, afluente do Kuanza, dá o nome às portentosas quedas de água, outrora chamadas dos “Duques de Bragança”, que justificam as permanentes romarias de turistas nacionais e estrangeiros. Quando se deixa a estrada N’Dalantado-Malanje, e se entra na picada rumo ao destino, nada na paisagem faz antever o deslumbramento das cataratas. A terra, por vezes cultivada, mostra-se pobre, algo ressequida, e poucos são as gentes e os quimbos que se avistam nos longes do planalto. De repente, após umas boas dezenas de lentos quilómetros, um amontoado de carros e um formigar de gentes em redor denunciam a chegada ao local, mas das quedas ainda não há vista, ou não parece haver. Eis senão quando, transposto o anódino miradouro, uma imensa cascata branca “fumegante” se despenha num barranco comprido e estreito onde se deitam dois arco-íris, um mais abaixo nítido e vibrante de cor, o outro mais acima já meio apagado pela fumaça da água que se abate, mas ainda assim a compor o por-mais-que-se-descreva indescritível quadro!!! Das quedas se diz que têm mais de cem metros de altura e não sei quantos de extensão, todavia o espanto deslumbrado que desenham no cenário bravio e selvagem não cabe na descrição da paisagem circundante, que só paisagem é, força da natureza tão ao jeito de África, continente-berço da humanidade como aqui é designado.

A emoção que se solta é do tamanho dos milhões de gotículas que se esfumegam no estrondear espalhafatoso da queda, apenas pressentida por detrás do arvoredo de troncos entrelaçados em caprichosas espirais de folhagens várias, pranchado à beira-rio, como se não fosse nada. Rio que corre, esgueirando-se ladino pelas rochas redondas, lisas, a exigir músculos e cautelas das pernas que as vão atrepando, esgueirando-se até ao cume da ravina. E de novo o deslumbrado espanto em nova perspectiva. De caminho há quem se enfie na água, entalado nas rochas em massagens de correnteza, tipo jacuzzi à moda da terra. Quando o calor aperta o improviso entra em cena.


Luanda, 3 Junho 2009

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Voltando a Sangano....

Voltei a Sangano, depois das calemas que, em princípio, se foram até novo equinóceo que as solte. A praia está diferente, pareceu-me maior. A maré, manhãzinha, estava vaza mas mesmo assim o mar, um nadinha espevitado p’ro costume, dançaricava mais abaixo, como quem desceu a bainha da saia ao areal ali espojado. E pela primeira vez consegui atravessar o pregueado miúdo de rochas que costumavam impedir a passagem para a baía mais ao lado, de que até então apenas avistara o redondo azul a bordejar a falésia recortada.

Logo ali a novidade da lagoa, enorme, também ela muito azul a desenhar-se na areia dourada e a enfiar-se entre as arribas. Praia ampla, quase virgem,, de um lado o mar, do outro as arribas, e lá bem encostadinha a lagoa, escondida da marca das pegadas, poucas, que se avistam junto à borda d’água. O fundo é de argila, cinzenta, viçosa vegetação ao redor, é uma espécie de maternidade de peixes que rabioscam fugidios à aproximação de estranhos, no caso gente a enterrarmos os pés no fofo escorregadio da lama.

E logo adiante a surpresa dos pés das falésias enfiados em meias cinzentas com búzios pequenitos esbranquiçados pregados ou espetados. O tempo e a acumulação de sedimento se encarregará de fossilizar o coturno. Para já , parece que estamos a ver um enorme pavilhão a céu aberto onde instalações de artista caprichoso se exibem. Artista que a sabemos ela, mãe-natureza, imprevisível e caprichosa como convém.

Para completar a mostra e pasmar os visitantes aqui e além, pousados na areia, uns pudins, alguns meio escangalhados no desenformar, decorados com umas rosetas de caramelo mais apertado, castanho muito escuro. Digamos que os “pudins”, rochas magmáticas que afloram e o sol esquadraça à supeficie, vão puxando o caramelo à medida que esfriam, formando-se cristais arrebicados, tipo pétalas, que lhes dão aquele aspecto de corolas de rosas empinocadas. E mais se hão-de empinocar e aglomerar por força do tempo, e dar lugar aos maciços das arribas que se alteiam a ver o mar. Falésias altaneiras, encarapinhadas de verde nos cocurutos, de onde a onde carrapitos de araucárias, aos avanços e recuos sobre a praia, ora acinzentadas e reboludas, ora tingidas de amarelos ocres dégradés, laminadas, a lembrar gigantes pasteis folhados .

Como não sabia como me explicar, tão encantada fiquei com o que vi, deu-me para a pastelaria alegórica. É um recurso como outro qualquer. À falta de melhor imagem….


Luanda, 27 Abril 2009

quinta-feira, 23 de abril de 2009

É tempo de calemas....

Viajando de novo pela estrada Luanda-Benguela, que desliza junto à costa, pela primeira vez vi o mar riscado de branco, às tirinhas, e sem aquele aspecto de imenso lençol azul turquesa com pinceladas de verde esmeralda, todo tufadinho, estiraçado até à linha do horizonte. Pelo contrário, mostrava-se de ar enfunado, a deixar adivinhar pouca convivialidade para passeatas descuidadas à beira-mar, banhos e mergulhos. Sua excelência estava de calemas…

Calemas, ondas grandes, as marés-vivas da costa africana, que ocorrem por altura do equinócio, chegaram mais tarde do que o costume, diz quem conhece, e vieram emprestar ao abril-águas-mil efeitos secundários terrivelmente belos e inclementes. Da ilha de Luanda chegou notícia de uma trintena de habitações arrasadas da noite para o dia, sina de musseque, definitivamente, e dos atrevidos avanços praias adentro que arredaram, provisoriamente, os veraneantes de fim de semana. Nas praias da costa, rumo ao sul, o efeito calema já deixou marcas, afectou acesso aos resorts de Sangano, logo em reposição, depenicou o areal, e escabujou-se à roda das cubatas da aldeia dos pescadores dali, mais avisados e prevenidos, afortunadamente. Espero voltar lá, brevemente, e ver com está.

A surpresa aguardava-nos na foz do Kuanza que, segundo entendidos, até final do mês, ou pouco mais, vai mudar completamente de figura. Com efeito, a bela língua de areia que se espraiava entre o oceano e o rio, delicada e fofa como um palito la reine, apresentava-se um tanto desdentada, com entradas por onde galgavam as ondas até lamberem o rio, agora azul marinho em correntezas de meter respeito. Como quem sabe o que aí vem e já se vai preparando. A fazer fé nas previsões, que os movimentos da geo-dinâmica autóctone, surpreendentemente espantosos, não enganam ninguém, a restinga vai desaparecer a brevíssimo trecho, na margem direita vai nascer uma praia, e o rio vai entrar a direito no mar, sem se demorar naquele comprido lagozinho remançoso, mas com forte personalidade, onde nos acocorávamso em amenas cavaqueiras, quais hipopótamos de pequeno porte e grande deleite. A caminhada restinga fora, ora na frescura espumosa do mar, ora no chapinhar cóceguento do rio, desaguava sempre em banhos de caldeira morna, lentos, demorados, relaxantes. Acabou; ou vai acabar. Outro programa de festas há-de vir, que o sítio é de eleição e vai continuar a ser paradeiro de repouso e fruição.

Nas margens os mangais arregaçam mais ainda os esguios troncos, quase tranças, as águias pesqueiras planam altaneiras a mirar a pescaria, e os pescadores amadores, e amantes de pesca grossa, fazem contas ao peixe que está para vir já que, de momento, o que por aqui estagiava se foi em demanda de águas mais serenas, longe das calemas. Plantas, bichos e homens em concertada espera, quando o tino dos homens prevalece, que dos outros não há que temer, a mãe natureza os educou no respeito das tradições e na justeza dos costumes .

Ela, a mais-velha, se respalda em seus jeitos de realeza e, se cultuada a preceito, é magnânima em seus mimos, quanto desmesurada em seus amuos. Da sua raiva, em espasmos de sentida revolta, sabem sobretudo os homens que continuamente a provocam com arrebites de assomos de civilização, cada vez maiores os avanços e as perdas. Avançam, sem olhar a meios, os detentores do chamado progresso civilizacional. Perdem os demais, plantas, bichos e homens. E sobretudo os homens. Os que não navegam na crista da onda do progresso. Os das civilizações ditas atrasadas. Os das sociedades ditas subdesenvolvidas; ou das regiões (países) ditas em desenvolvimento; ou das economias ditas emergentes. Depende do que têm ou do que podem vir a render. E quando rendem, rendem para quem pode, para quem já tem e não para quem precisa, porque é preciso ter para poder cavalgar a onda. Resistir à calema.

As calemas que a tempos se eriçam na costa africana, em espendores de espuma e caprichos de ventania, revolteando areias, (re)talhando margens, expressivos bailados de Kiandas, as deusas dos mares, são aguardadas e celebradas como lhes é devido. Apenas os indígenas vulneráveis as temem, porque as respeitam e guardam reverência à mais-velha, mãe natureza. E a velha sente que os seus ensinamentos se desconjuntam, a terra se desmorona. E estrebucha e braveja. Dá sinal. O planeta, ele, o mais-velho, representa o poder, ela a força, mas ele não pode nada. Está seriamente ameaçado. Todavia, e ainda, ao abrigo das calemas da civilização? Nada o garante. Muito pelo contrário.

Luanda, 22 abril 2009

quarta-feira, 22 de abril de 2009

De Benguela para a Gabela...

O fim de semana prolongado da Páscoa, precedido de um compromisso profissional em Benguela, foi aproveitado para nova incursão naquelas paragens e, no regresso, uma visita à Gabela, a terra dos cafezais que, segundo informação espúria, estariam em período de floração.


As flores já se tinham transformado em pequenos bagos verdes, não imediatamente visíveis aos olhos de quem não conhece o arbusto cafezeiro, de modo que após minuciosa busca lá se percebeu que estávamos em presença de vastas plantações de café, de um e de outro lado da estrada. O mar verde de onde se erguiam imbondeiros, bananeiras, e um nunca mais acabar de troncos, ramos e folhas numa algazarra de passarada, flores garridas e frutos “desconhecidos” – a diversidade não aproveita à ignorância de visitantes bio-analfabetos - era afinal o demandado cafezal. A estrada da Gabela é um espécie de pesponto ziguezagueante na vastidão da paisagem verdejante, espampanante no exagero de tons e viços, espelhada no azul prateado do rio que se esgueira por palmares e lagoas, e onde aqui e ali se arredondam aldeias de cubatas e de adobes. Estas, como as da vila, de casas vermelhas da cor da terra, colmadas ou com telhado de zinco, encarrapitadas nos morros em cascata, assim a lembrar o presépio, humildes na singeleza dos cómodos e dos haveres. Maravilha para quem vê, é um espanto, dureza para quem lá vive, dá que pensar, mas que não se adivinha no vaivém colorido das gentes e na garridice da catraiada. Dir-se-ia que de tão pouco ter esta gente com pouco se contenta, e se entrega em perfeita harmonia ao brilho da luz , apesar do sol inclemente, que se derrama nas cores cálidas da mãe natureza, ela que a todos se impõe e tudo domina. Enfim, a visão romântica do passante, bem acantonado no ar condicionado, que no devaneio da miragem se escusa a pensar nas endemias e apêndice de enfermidades e escassezes que determinam vidas desprotegidas e mortes prematuras. Beleza e ironia….


A meio caminho, paragem nas cachoeiras do Sumbe, imponente espectáculo natural de luz e som, grossas cortinas cantantes de água a esfumear brancura no verde do entorno recortado no céu azul pintalgado de farrapos de nuvens, e o rio segue lesto a reverberar dourados na manhã soalheira. Ali perto uma aldeia, e o formigueiro do mercado de rua , cabanas e casas de pau-a-pique, outras mais de alvenaria, porém esconsas, perene o abandono das gentes que se afadigam no frenesim de acrescentar às vidas minguadas o pão-nosso-de-cada-dia.


Benguela, a cidade das acácias rubras, continua esbelta e mal trajada. Belas vivendas do período colonial, à vista bem restauradas, bordejam amplas avenidas, boas enfiaduras, junto à zona ribeirinha, onde um passeio marítimo a pedir restauro, salvo no pedaço ocupado por restaurantes e esplanadas, tal como os edifícios, os passeios e os jardins de boa parte da cidade reclamam intervenção urgente. E então Benguela será a bela.


Uma volta pela costa, nos arredores da cidade, levam-nos à linda praia da Baía Azul, enfeitada de árvorezitas de rendilhada folhagem, extenso areal perlado de conchas e pequenos búzios onde um mar canelado, esticadinho, azul e verde desenha bicos de espuma branca. Tudo é luz, cor e serenidade apenas agitada pelo pipiar dos pássaros em revoada. Adiante, picada fora na vastidão do festival de verdes da paisagem, assoma-se à aldeia, paupérrima, e porto de pesca da Caota, com destino à Caotinha, pequeno promontório debruçado sobre uma extensão de mar de crépon azul e esmeraldado a perder de vista. E a vista perde-se em deleites de lavar-olhos-e-enxaguar-alma. Num repente, enxameiam os meninos da aldeia dos pescadores, olhinhos fosforescentes na lengalenga da pedinchice suscitada pela presença de estranhos, estrangeiros, entretém de graúdos e pequenada num lugar onde não acontece nada. Na desvairada beleza da natureza selvagem e dominadora. Só a pobreza das gentes mora aqui.

Luanda, 16 Abril 2009

Chove em Luanda....

Após um mais longo do que o habitual período de estiagem a época das chuvas fez finalmente a sua entrada em Luanda. Eram frequentes os comentários a propósito, em particular na imprensa escrita, advogando que o “feitiço” da seca era uma lotaria, no caso a correr bem para as obras do governo, em particular as do governo provincial de Luanda estariam a ganhar com isso, mas a poder dar para o torto se a chuva não começasse a pingar porque o povo dos muceques, a maioria da população da cidade, já andava inquieto, a sufocar poeira e a esquadrinhar os possíveis autores do tal feitiço.


Feitiços e feiticeiros aqui é coisa séria. Mesmo em plena capital, volta não volta lá vêm ao de cima, fora o que é abafado, notícias de violência sobre crianças ou velhos acusados de feitiçaria. O caso das seitas, descobertas e desmanteladas, que em Luanda mantinham prisioneiras cerca de quarenta crianças “feiticeiras” indignou a opinião pública, e veio pôr a nu uma realidade pressentida, sabida, mas não assumida. Desde então incidentes relacionados com alegadas práticas, e acusações, de feitiçaria têm vindo a ser noticiados. As elevadas taxas de analfabetismo favorecem o campear do obscurantismo e da crendice, as más condições de vida e a penúria completam o ramalhete, independentemente dos matizes da matriz cultural africana, mais telúrica. A explicação mais desempoeirada, porém, ouvi-a de um jovem de muceque, motorista de profissão, pouco escolarizado, mas informado: “ é gente muito ignorante e muito mais oportunista, porque só acusam os que lhes convêm e não se podem defender; é sempre a velha que tem casa própria que é feiticeira, ou a criança que é filho doutro matrimónio”. É o viver no limiar, ou abaixo, da pobreza.
Bom, mas as chuvas lá acabram por cair em Luanda. Chuva grossa, redonda, que chega sem quase aviso e se despenha em fragores dum céu que de repente se põe antracite e o ar fica espesso e esbranquiçado. Num repente muda tudo, só o calor parece aumentar. E num repente há enxurradas inimagináveis, as ruas passam a riachos, alguns caudalosos, muita gente corre à procura abrigo, o banho de encharcar é garantido, outros descalçam-se e fazem-se ao piso, pernas dentro d’água. Os carros, pneus afundados, deslizam a espadeirar água e lama enquanto vão galgando os improvisados rios que arrastam terra e detritos num cenário incendiado de raios e coriscos. Tudo estrondeia, e os eflúvios da terra molhada enrolam-se no ar quente.
Esta é a versão “secos e molhados” romântica de quem assiste, bem protegido, às chuvas em Luanda. Bastam umas horas, poucas, e no apuramento de resultados há inundações, casas e carros danificados, árvores tombadas, vias interrompidas. Nos bairros populares, mais muceque menos muceque, os danos, conhecidos e divulgados, dão conta de habitações destruídas, quando não mortes e afogamentos, ruas (??) intransitáveis, prejuizos elevados, enfim, durante dias os charcos, a lama e o lixo desfeito hão-de tomar conta da vida daquela gente. Até à próxima chuvada. Que por especial desígnio da natureza há-de fazer-se chegada tempos depois. Acho que ninguém quer imaginar o que seria de Luanda se chovesse dias a fio….
Nas províncias, especialmente no centro sul, a chuva cai sem parar, as cidades ficam inundadas e desmoronadas, desaparecem aldeias, rebentam diques e pontes, morre gente, talvez muita (?), chegam à capital ecos da desgraça, há milhares de desalojados, irrompem as campanhas de solidariedade e de recolha de fundos, alimentos e roupa, anunciam-se obras de reconstrução, prometem-se obras de prevenção. São mobilizados homens e máquinas, há gente do governo em penosa digressão, os esforços propalados são de monta.
Há quem cientificamente reclame consequências das alterações climatéricas. O maldito aquecimento global pisa sem dó os mais pobres que, por o serem, são mais vulneráveis. A poluição global descarrega em cima deles as nuvens mais viciadas. A indiferença global deixa-os entregues à sorte, ou ao azar.. A ganância global rouba-lhes os projectos de infra-estrutura e de protecção. A corrupção global atira-lhes com materiais obsoletos de construção e come-lhes o tutano da produção. A terra rica não “enrica” quem lá trabuca e não manduca. A sacrossanta globalização toca a todos, sobretudo no perder, mas uns são mais atreitos do que outros. E que me conste o “ao deus dará” não vem da matriz cultural africana; eles é mais as forças da natureza e dos espíritos, dos ancestrais. Herdaram, os poderosos, com sofreguidão e despudor, a sageza judaico-cristã do “venha-a-nós”. Haja paz!

Luanda, 7 abril 2009.

Março, mês das mulheres....

Em Angola Março é um mês dedicado às mulheres. A 2 de março celebra-se o dia da mulher angolana. A 8, obviamente, celebra-se o dia internacional da mulher, e é feriado nacional.
Se o tema da violência doméstica já era objecto de discussão na opinião pública, este mês tem -se-lhe dedicado uma particular atenção, quer pelo tratamento de matérias específicas na imprensa falada e escrita, quer pelas muitas iniciativas que aqui e ali vão sendo anunciadas.


Ora se há coisa de que já me tinha apercebido nestes curtos meses de estadia é que a sociedade angolana é profundamente falocrática e os tiques de machismo, não o ibérico, topam-se a olho nu. Não precisei de me esmerar muito na observação do que me vai passando por perto, nas conversas com angolanos, inclusive patrícios com dupla nacionalidade aqui radicados há anos, no comportamento do cidadão comum nos espaços públicos, etc. Pressente-se uma larvar , inconsciente?, desvalorização da mulher: elas são sempre objectos de consumo, as mais das vezes dispendiosos e que dão muita canseira, as propaladas várias mulheres a que cada homem tem direito, e de que se ufana, e que, convenhamos, é um estilo diferente do costumeiro uso, ou pretensão de, dos escalpes à cintura que o famoso , e ridículo, macho latino, e derivados, faz, ou ainda vai fazendo porque já não é o que era, as mulheres emancipadas estão-lhe a acabar com a raça, mas voltando atrás, as mulheres de colecção parecem (??!!!) não se dar muito mal com isso. O casamento “de papel passado” é acontecimento social relevante, a atestá-lo os aparatosos cortejos nupciais, com muito espalhafato e muitos figurantes, mas a condição de “mulher de” em regime de acasalamento não se me afigura socialmente desvalorizante. Ser a outra, que até é letra de canção em voga, confere estatuto enquanto mãe dos filhos de. O homem angolano faz questão de se afirmar pelo número de filhos, e não os ter, isso sim, é penalizador em termos sociais. Logo, muitos filhos, várias mulheres, famílias numerosas e alargadas, não aparente conflitualidade entre os diferentes núcleos familiares, tudo isto perpassa aos olhos de quem observa sem quaisquer instrumentos de análise mais fina. É o que parece ser. E empiricamente se atribui a uma matriz cultural africana e, em Angola, também às consequências da guerra, elevado número de homens mortos, excedente de mulheres com fraca inserção no mercado de trabalho, economicamente dependentes, que assumem sem constrangimento o seu papel de reprodutoras a troco de alguma estabilidade, e reconhecimento, social. Dependendo do grupo social a que pertencem porque, numa sociedade estratificada como a angolana, na base da pirâmide as famílias alargadas assentam cada vez mais em núcleos monoparentais. São as mulheres que sustentam os filhos, os netos, os pais desapareceram ou pura e simplesmente abandonaram o lar; ou então decidiram não reconhecer a paternidade e não pagar pensão de alimentos. Para além de que as gravidezes precoces continuam a ser flagelo social. Meninas com vidas interrompidas, que abandonam os estudos, e cujo destino mais provável é a “zunga”, assim chamada a venda ambulante, e a reprodução incessante do ciclo de pobreza: a zungueira, ou quitandeira, está condenada a uma vida dura, levanta-se antes da madrugada, carrega pesos impensáveis, percorre as ruas da cidade até ao anoitecer, garante o sustento da casa e dos filhos, e quantas vezes do homem, quando o há, desempregado ou sem vocação para o emprego. É mulher guerreira, sobrevive na selva de asfalto, carrega o filho pequeno às costas, foge da polícia, corre para apanhar o “táxi”, o candongueiro de todas as incertezas e perigos, chega a casa noite dentro, leva pancada, se há homem, e mesmo se não há vai-se perdendo nos sonhos e e nas promessas da vida, e os filhos a aumentar. Ainda esta manhã ouvia numa entrevista de rádio, “zungueira, 23 anos, quatro filhos, o esposo motorista” mas…. não percebi bem, talvez com alergia ao volante… ela levanta-se às 3 horas da manhã, etc., etc., etc.
Neste contexto, e dada a minha mania antropológica de chegar, observar e tentar entender, a actividade das organizações de mulheres despertava-me grande curiosidade, ia lendo e ouvindo a respeito, porém sem qualquer relação de proximidade até que, inesperadamente, me foi oferecido um convite para participar numa iniciativa da OMA, organização das mulheres angolanas, do MPLA, comemorativa do dia Internacional da Mulher. Tratava-se de um almoço/convívio algures numa esplanada no centro de Luanda. À chegada, a senhora que me convidara mais três amigas e eu, fomos gentilmente recebidas à porta e encaminhadas para a mesa que nos foi destinada. Foi-nos indagada a nacionalidade. Nas mesas em redor havia já grupos de mulheres em amena cavaqueira, muitas trajando belíssimos estampados tradicionais, e os turbantes que não me cansava de mirar e remirar, havia alguns homens, poucos e meio enfiados, sabiam-se não vedetas,, contrariamente ao habitual, e a conversa ia fluindo descontraída. A dada altura vem alguém por entre as mesas, cumprimentando e saudando com um sorriso cúmplice as “camaradas e as irmãs” ali presentes, e indaguei quem era aquela simpática senhora, bonita figura de mulher, fina e elegante numa impecável túnica branca, ao que me responderam ser a “camarada Inga”. E, eis senão quando, fui abordada no sentido de ir ocupar a mesa principal, da secretária-geral da organização, porque portuguesa e porque a “camarada Inga” fazia gosto em juntar representantes de diferentes nacionalidades. Resolvido o embaraço que se me colocou face ao eventual abandono do grupo original, lá me fui juntar ao grupo na “mesa da presidência”, passe o exagero, onde, à excepção de uma senhora vietnamita que não falava outra língua que não a sua, e por isso não falava apenas sorria, a conversa ia rolando, de orelha a orelha, ao abrigo do som que se desprendia do palco. O almoço foi uma soberba mostra da culinária tradicional de diferentes províncias, pratos e sabores. Em rusga se ia à comida, o conjunto, que entretanto reconheci de renome, ia marcando o ritmo, e não demorou muito a, entre comes e intervalos, andar tudo num vai-de-roda, alegria solta, gargalhadas e gingar de corpos numa africana confraternização onde os desconhecidos se conhecem, não há barreiras nem peias de cortesia. Todas as mulheres que ali estavam eram amigas, cúmplices nos requebros da dança, no trautear de cânticos e dialectos, cor, raça, pátria, religião diluidos na magnificência dos trajes tradicionais e nos motejos de ocasião.
A dada altura fui solicitada para falar à imprensa, e de seguida apareceu-me a televisão pública angolana, TPA, e sem cerimónia a conversa escorreu animada, como animada se foi espreguiçando a tarde entre risos e cochichos e passos de dança. Um compromisso anterior fez-me sair da festa antes do fim, que se iria prolongar noite dentro, e as despedidas, só na medida da proximidade incontornável, foram ternurentas. Saí como quem vai-ali-e-vem-já, maravilhada com a mulherista festança.
Uns dias depois haveria de receber novo convite, desta vez directamente da OMA, a que não pude corresponder por imposição de indesejável, porém não desprezível, maleita bacteriana.
Da OMA ficou a promessa de novas oportunidades. A mim espicaçou-se-me a vontade de entrar mais fundo no quotidiano angolano, de espiolhar por dentro esta sociedade que me fascina e intriga. À vista desarmada as contradições são “mais que muitas”, mas….. o que se esconde por detrás deste jeito solto e despreocupado de viver? Que verdades e valores encerra esta cultura? Quero, tenho de, perceber.

Luanda, 24 Março 2009

Pela praia de Sangano

De como ir a banhos tem que se lhe diga foi o que aprendi recentemente, não obstante ir até à praia seja programa mais do que frequente. Desta feita a ida foi a Sangano, uma das tais praias dos ricos, que pelos vistos , melhor dizendo, lido e ouvido, por aqui a divisão de classes traz à tiracolo quinquilharias várias, e dos carros e cilindradas, e dos condomínios mais ou menos fechados, e dos poisos jetessete de ocasião já me tinha dado conta, mas da hierarquia social das praias ainda não. Agora que sei vou ficar muito atenta, e enriquecida, presumo. É bom aprender coisas novas. Ou se calhar não tão novas assim, que dos tiques de burguesias balofas e entediadas, enfadonhas até dizer chega, tenho eu dose. Nem da lusa pátria me olvidei, nem podia mesmo que, abrenúncio, o quisesse, que os patrícios me vão mantendo espertinha, nem estava à espera de vir aqui encontrar o negro charme discreto da burguesia ou inspiração buñueliana quejanda.
Voltando aos pobres e ricos, os primeiros ficam-se por areais mais à mão, fazem-se à estrada mas quedam-se por alturas do museu da escravatura, a não mais de 50 km, a sul, da cidade capital, num pequeno morro que se ergue junto ao mar, na vasta planície de areias e sapal. Os outros dão gás e ar condicionado e vão aldear até Sangano, Cabo Ledo ou mais adiante, cabanas, restaurantes e afins, sempre coisa para mais de hora e meia de viagem, estrada desimpedida e Luanda cento e tal quilómetros atrás. O sufoco da miscigenação classista haverá de acontecer no regresso, e disso tomei primeira nota da leitura de uma expressiva reportagem estampada num jornal, ao entardecer e já entardecidas as gentes e as tolerâncias, pois ele é filas de trânsito infernal, atropelo e desrespeito de tudo quanto é regra, alcoois em desatinos suicidas de condutores mal encartados, sobremaneira jovens e alienados pelos excessos de fim-de-semana-sem-rédeas-ao-sol. Estes são os das praias mais à mão. E diz-se, e diz o jornal, que das outras mais longinhas também se escapam alguns cavaleiros do asfalto a acelerar arrogâncias de classe (nova)rica. Entrementes penam todos quantos se permitiram, mais acima ou mais abaixo, ir espairecer à beira-mar.
Se a paisagem até Sangano, mesmo se já muito vista, nunca deixa de surpreender, a descida para a praia, picada fora, falésia adentro, vai escorregando, travões às quatro rodas, pelo ocre rochoso da ravina, as araucárias enfileiradas a rematar a borda, os tufos de aloé a entremear de verde , dependurados, o mar a crescer em azuis de ondinhas de brincadeira, e lá em baixo a areia, no começo ainda terra e arvorezitas a sombrear os estacionamentos, e logo o areal desafogado, a perder de vista numa sementeira de conchas e búzios . As costumeiras caminhadas à borda-d’água, antes que o sol desamue e se descubra, o mar a cocegar provocações e mergulhos vigiado pelos torneados das ravinas, avermelhadas e altaneiras, encristadas de verdes ralos, aqui e ali rasgadas de cima abaixo por talhos que não chegam a ser caminhos, tal a altura e o declive. Gente, que não os veraneantes e sucedâneos, raramente se avista, embora a raridade de uns negritos recortados no topo, e logo como que por encanto prantados na areia, não deixe de acrescentar o exotismo do sítio.
Tirando os aldeamentos turísicos e suas acomodações, a aldeia de pescadores tem lugar preponderante na praia de Sangano. As cubatas colmadas de pau-a-pique, escuras antracite, alinham-se num curioso axadrezado de estendais de roupa e de seca de peixe, estes feitos de troncos em bancada, cobertos de peixes escalados arrumadinhos por tamanhos e feitios, no chão de terra batida. Os barcos de madeira, ora postos na areia, ora saídos para a faina, e em chegados o peixe vende-se logo ali e não chega para as encomendas. Não importa se é sábado ou domingo, na aldeia não se topam molezas de fim de semana, mesmo que as haja, e haverá. Os homens e as mulheres aparecem ocupados nas suas lides, elas na garridice dos panos e dos turbantes. A catraiada, putos semi-nus, espalha-se em cachos de algazarra e cabriolices na areia.
À medida que a manhã avança cresce o número de pessoas nas toalhas coloridas e na água. Nas esplanadas , terra batida sombreada por toldos ajaezados consoante o aparente improviso da decoração, pois percebe-se a intenção de parecer que tudo é natureza, as mesas e bancos corridos de madeira vão ganhando movimento e em breve quem não se precaveu com a necessária reserva corre o risco de ter de ir procurar almoço a outra parte. Da excelência dos peixes e mariscos que por aqui se comem não há muito a acrescentar, a não ser que desfiasse os petiscos e os sabores de fazer água na boca, o serviço, negro, é sempre acolhedor e simpático, duma lentidão ronronante e peripécias engraçadas, o linguado pedido chega à mesa travestido de lagosta, há que dizer “foi engano, não é para aqui”, e esperar mais um bocadito, debicando miudezas crustáceas , que a lagosta lá irá aterrar no prato de quem a pediu e o linguado mergulhar no nosso, e não morre ninguém. Faz parte do colorido local.
Como também vai sendo regra o afluxo de “tugas”, os portugueses, numa praia onde o que mais se vê são “pulas”, os brancos. Donde, para além da divisão de classes parece haver diferença de cores…. Será?!! Ora, há coisas muito mais importantes para nos ocupar as mentes.
Precaução ingente é metermo-nos à estrada antes que se faça tarde e o desatino campeie.

Luanda, 20 Janeiro 2009

Barra do Kuanza

De novo na foz do Kuanza…

O caminho, melhor dizendo, a estrada, habitual para a a Barra do Kuanza desagua no lado oposto do rio. Desta vez chegámos lá do lado da margem esquerda, que o mesmo é dizer que houve aventura de picada. Mais difícil ainda porque à ida não se topou logo a dita e então foi-se de zorro sapal adentro a desenhar picada numa patinagem ás quatro rodas, repuxos de lama a cobrir o jipe, e isso era o menos, que a sensação de que se ia atolar numa das guinadas, se não tombar, foi assim a eriçar a pele e a cortar a respiração. Mas valeu a pena, passado o sufoco, claro. Já perto da foz o terreno fez-se duro, já o palmar bordejava o rio que se enroscava azul, calmeirão e curvilíneo até se lançar de encontro ao mar em rumorejos e espalhafatos de ondas na ponta da restinga, largo banco de areia a separar o atlântico esverdeado e revolto das águas azul- cálidas e remançosas do rio.


O jipe atracou no topo do morro de areia e a caminhada, cerca de 5km, foi pela “marginal”, rio à ida e mar à vinda, porque apesar da manhã não ir adiantada as areias escaldavam os pés; o sol aqui não é de cerimónias, ergue-se cedo, pranta-se escancarado, e pronto.


Fora d’água a temperatura rondaria os 30 graus e dentro dela pouco abaixo andaria, embora refrescasse, apesar de tudo. De modo que o passeio foi temperado com banhos e braçadas, os peixes aos pinotes logo ali, quando não a roçagarem-nos, descarados, e ai que susto, o rio logo fundo, e o fundo à vista, o céu azulão cortado pelo vôo altaneiro da águia pesqueira, mergulho certeiro e logo o peixe no bico, a passarada mais miúda em revoadas irrequietas e logo em corridinhas na espuma da água, e o besouro aferroado em zunidos de ameaça, a pique sobre os intrusos, e vai mergulho, e foge e espaneja que a picada, a do bicho, é de respeito. Já pela borda-mar, volutas de espuma branca encarrapitadas nas ondas que se vêm estatelar na areia dourada, onde conchas e búzios de toda a forma e feitio, e peixes enormes inchados em carapaças de escamas dão de comer aos caranguejos.


Para retempêro de coragem e energia, antes do regresso, mais um derradeiro banho no rio, após correria de pés no ar areia fora, de través na restinga, que foi mais um ficar de molho, que nem hipopótamo, a demolhar o corpo e a vontade de dali sair.


Quis o acaso que na volta nos tivesse saído ao caminho a picada, a verdadeira, dura e enxuta, portanto só solavancos, sem patinagem. A estrada até Luanda corre com mar à vista, lá mais em baixo, esticado em rebrilhos de diamante, assim como um imenso manto de crépon azul-lápis-lasúli pincelado de verde-esmeralda. Do outro lado passa a savana, a reverdejar, onde embondeiros, de troncos a morenar e a soltar as jubas verdes, anunciam enfeites, as múcuas ainda só pingentinhos.


Paragem no mercado de artesanato de Benfica, a cerca de 20 km da cidade capital. Desfeito o recato e o des-à-vontade que inspira visto de fora, a frescura que se experimenta por debaixo dos colmos alinhados em toldos de improvisadas tendas em fileirinhas estreitas e sombreadas depressa dispõe à fala com os mestres, assim se tratam os artesãos.Aqui se vendem artefactos africanos sobretudo, embora entre os vendedores, não mestres, haja quem ofereça ásias e chinesices, com o devido respeito porque de artesanato se trata. Mas deambular pelos carreiros de terra por entre chamados e ofertas de desconto, e os olhos a desvairarem na multitude de peças, muitas delas inesperadamente indígenas e exóticas, mas sem fitar demais porque isso obriga logo a fazer oferta, o preço deve ser regateado, faz parte, é uma experiência africanizante que se quer repetir, mau grado a sensação de se entrar num mundo, pequeno mundo, completamente à parte. Fiquei cliente, (in)segura.


Luanda, 17 Dez. 2008

As pedras Negras de Pungo Andongo

A excursão de 4 jipes saiu pelas 6h30 do ponto de encontro combinado, Viana, a cerca de 20km de Luanda, para onde tínhamos arrancado cerca de meia hora antes, e quis o acaso que o trânsito estivesse maneirinho, porque o normal seria levar 1 hora, se não mais, razão por que foi saltar da cama às 5 horinhas, o sol a nascer, e zarpar para juntar ao grupo, que a viagem era para durar, o dia entretanto ia alto e o calor também a subir de tom. Destino da expedição, Pedras Negras de Pungo Andongo, a coisa de 350km de Luanda, rumando a leste, para o interior, província de Malanje, terra de renomadas belezas naturais.
A fita de asfalto, posta de fresco, vai-se esticando, às lombinhas, savana fora rumo ao planalto norte, também chamado de Malanje, e depressa nos há-de sair ao caminho a floresta malanjina. Chemin faisant, província do Kuanza –Norte, árvores, arbustos, acácias muitas, em flor, corolas fulvas a pintalgar os verdes ton-sur-ton, esguias no tronco e a terminar em pompons farfalhudos, assim a lembrar as carreirinhas de bouquets nas floristas . Até à primeira paragem, no Dondo, cidadezinha, passe o eufemismo, simplória e simpática, gente singela , pouca roupa e chinelo no pé, pobreza e dignidade q. b., acocorada à beira do Kuanza que aqui se espreguiça em largueza, e na Lagoa, e o povo da outra banda chega de barco puxado a remo, tudo no maior remanso. Bem ao lado da estrada, na margem do rio, em terreiro amplo e desafogado, ergue-se soberba, aperaltada em missangas de florinhas rosa- forte, a mostrar grandezas, uma árvore imponente, parente de acácia, a dizer que nesta terra a natureza não é dada a mínguas. E Luanda tinha ficado quase 2 horas e 200kms atrás.
De novo a excursão se fez à estrada, o sol a dardejar lampejos, jipes cerrados no ar condicionado, a caminho das Pedras Negras e dos alvores do planalto. Agora vêm ao caminho bosques mais cerrados, mas sempre a lonjura a desvairar-nos os olhos, o céu baixinho e esticado por cima dos montes que lá longe vão emoldurando a paisagem. Montes a perder o ar macho dos tempos do cacimbo, escuros e de rocha à vista, para se travestirem de montanhas trajadas de verdes gaiteiros, umas mais senhoras, lisas e abonadas, outras mais menineiras com puxados de carrapitos nas carapinhas, todas a dar ares de fofas e macias no acolchoado do coberto florestal. E de repente, como quem diz, porque umas tantas horas e mais de 350 kms já eram feitos, e da estrada já se tinha passado para a picada, esta sem grandes asperezas, só o efeito picadora moulinex activado, erguem-se os primeiros avisos das Pedras, rochas de conglomerado gigantes a imitar a tez antracite dos granitos, espetadas a apontar p’ro alto em formas imprevisiveis e atrevidas. A picada desagua na aldeia de Pungo Andongo, lugarejo perdido do mundo, muito aprumadinho na pintura fresca e viva das fachadas dos inesperados edifícios oficiais, e só, pois ele é escola primária + outra com ar de secundária ou afim, posto de polícia, centro médico, sede comuna ou coisa parecida, igrejinha paroquial incluída, e gente, aldeia, kimbo ou quejando, nada; só as ruínas das casinhas de adobes do povoado de antes da guerra. Tudo isto literalmente aninhado no regaço das famosas pedras, as Negras, majestosas, altaneiras, emproadas, matronas de écharpes e pregadeiras verdes sobre o traje escuro, enfileiradas, a olhar-nos d’alto, displicentemente. E a gente embasbacada, a balbuciar espantos, lá se atreve a amarinhar a escarpa para escancarar de pasmo uma vez no topo, que se a subida é de repuxar os bofes, a vista é de cortar a respiração! O sol a pique, de torrar mioleiras, o ar espesso, aveludado, um silêncio de melodia, e nem um pássaro a picar no horizonte imenso, redondo e a bater num céu que mal se percebe onde começa ou acaba, luz e cores contrastadas, terra de ninguém a perder de vista. Só o rio Kuanza se esgueira lá ao longe em curvas voluptuosas que ora aparecem ora se escapam. E nada nem ninguém, nem do pitoresco Pungo há vislumbre, fica esborrachadito num recesso. Só mesmo uns novelinhos de poeira muito esbatidos sinalizam as picadas, que não se percebem, e dão sinal de que há gente nas redondezas. E gente haverá por certo, dispersa, capaz de engolir distâncias como só os africanos sabem, pois Pungo Andongo foi retraçado no mapa; esta aldeia centro de serviços alguém há-de servir.
O regresso foi por N’Dalatando, antiga Salazar, cidade capital da província do Kuanza-Norte, estropiada de guerra, escanzelada, marcas de balas e de destruição escancaradas nos edifícios outrora dignos de registo, o estendal dos telhados de zinco pardacento a dar conta do assentamento do vasto muceque, também ele pardacento, e pobre. Num cafézinho no centro, restaurante ritz na tabuleta, o café era feito fresquinho na ocasião: nescafé em frasco e água quente num termo; na casa de banho, sem porta interior, um balde e um jarrinho para tirar água; ao balcão uma jovem meio atrapalhada e tímida, sorriso franco, simpatia entrançada num caprichoso penteado afro, que na saída a todos desejou boa viagem, e agradeceu a visita. Só mesmo este povo!
Luanda a cerca de 250 kms, estrada asfaltada em serventia, mas o gosto pela picada se alevantou, e esse foi o caminho escolhido, “estraada bôa siim”, assim nos foi dito, a rasgar de canto a floresta do Mayombe, floresta tropical , densa, espécies autóctones de grande porte e beleza, as fitas das lianas a esvoaçarem ao vento nas bordas do carreiro, os raios de sol oblíquos a tracejarem reverberações na poeira revirada em espirais de luz e sombra, como que a psicadelizar a iluminação natural. Rio atravessado a vau, a ponte está em (re)construção, sem contar umas tantas pontes metálicas, militares, mais modestas mas indispensáveis para permitir a travessia, e um grupo de mulheres, corpos negros reluzentes, aí a tomar banho, surpreendidas com a invasão dos excursionistas mas tranquilas, puxaram dos panos assim como quem não quer a coisa, e lá continuaram os ritos da higiene. Gente caminhando picada fora, ora um, ora outro, ora grupos qdo mais próxima alguma sanzala, sempre a saudação, mão no ar, sorriso rasgado, chilrear animado da criançada, que carros, grandes, logo quatro, e gente branca embasbacada era acontecimento pouco visto, deu para perceber. Numa das paragens para fotos, junto a uma aldeia, veio metade do povoado apreciar o espectáculo e os adeuses foram de grande animação.
Da guerra restam marcas, há restos de balas e de outras munições nos sítios mais inesperados. O inimaginável são os tanques, os canhões e demais artilharia pesada na beira de estrada, quase nos quintais, encarrapitados de patas p’ro ar, amolgados que nem brinquedos atirados por criança birrenta. Como inimaginável é a certeza de que estas paragens, estas estradas, estas picadas, estes matos onde estão a renascer aldeias e kimbos foi lavra de minas mortíferas e de má memória. Esta guerra andou por aqui, selvática, cega e impiedosa, até há pouco mais de seis anos. É muito pouco tempo.
Luanda, 2 Dezembro 2008

Lubango, capital da província da Huíla

Desta vez a viagem foi até ao Lubango, cerca de 1000 km a sul de Luanda. Começou às 5h00 de 6ª feira e acabou às 22h00, recheada de peripécias mais irritantes do que divertidas, a começar pela avaria do jipe adiante de Benguela, numa estrada larga e asfaltada de fresco, àquela hora, meio da manhã, com pouco trânsito, e como não havia rede de telemóvel, o recurso foi pedir ajuda a quem passava, e logo uma carrinha com dois angolanos se aprontaram para ajudar, do carro saía fumo e como não tínhamos água eles foram de pronto buscar uma garrafa que levavam para a viagem; tentaram improvisar conserto mas como a coisa era séria sugeriram retorno a Benguela e ajudaram-nos a pedir boleia que foi dada por uma senhora, mais as crianças no carrito apertado, que nos foi levar à porta do escritório da empresa apesar do seu destino ser algures à entrada da cidade. Tudo com mta simpatia, sorrisos e angolana cordialidade. De novo em direcção ao carro imobilizado, mecânico e ferramentas à mistura, constatou-se que era caso p/ reboque e nós tb acabámos rebocados por um funcionário, expatriado, até ao estaleiro mais próximo onde nos seria entregue outra viatura, e pelo caminho o homem foi debitando, entre “buocês”, gajos e pretos, palpites sobre tudo e todos, um maioral. No final da corrida esperava-nos uma carrinha imunda, que de pronto foi mandada enxaguar só p’ro disfarce, aviaram-nos, com prontidão e por iniciativa própria, umas sandes no refeitório, e desejaram-nos umas “boas”(??) seis horas de viagem até ao Lubango, por veredas e (des)picadas, sem rede de telemóvel, através de matas e morros e gente nenhures, apenas alguns kimbos, aldeias impensáveis, no meio do mato, com o sol a fugir perigosamente por detrás das serras, e logo noite. Não vale a pena gastar muita tinta com esta descrição mas o pedacito de asfalto, e luzes, e rede que precederam a entrada na cidade foi maravilha e maravilhosa a vista da praça central, ajardinada, iluminada e enquadrada por belos e conservados edifícios, um espanto que nem Luanda cidade capital, como cá se diz, mais o alívio de confirmar ainda confirmado o quarto no hotel, a preceito, desenfarruscar num banho quente e cair na cama antes de cair no chão tais as tonturas e o cansaço. Resumindo, se a tensão, não o susto.., se pudesse partir em fatias grossas e comer tínhamos chegado ao fim da sessão de estrebuchos e sacões empanturrados e mudos, de tanto desusar a fala, só olhos postos na picada, aqui e agora desviada por causa das obras, e a poeira, e o nevoeiro (!!??), e a trovoada a seguir-nos de longe em repentes de iluminação. Aventura p’ra contar e não p’ra repetir.


O Lubango, já se disse, surpreende pelo aprumo de casas e jardins, muito floridos e com relva, pela pacatez de tráfegos e gentes, e está erguida numa terra, a Huíla, de serras e planalto e belezas sem par. Dia e meio de permanência deu para cheirar, e pasmar!
A fenda da Tundavala, impressionante greta na montanha que se debruça sobre um extenso vale debruado de cordilheiras, serra da Chela, serra da Leba, é um santuário de artes, pintura e escultura, naturais; nem sei se impressiona mais a forma caprichosa e rebuscada das pedras sobrepostas ou se a cor delas. As esculturas são imponentes, a desafiar a imaginação e a lei da gravidade, e em pano de fundo a montanha rasga-se em tons de azul, antracite, ocres e verdes espantosos, as rochas pintalgadas em jeitos de pintura, motivos geométricos, escaqueiradas e espalhadas pelo chão que é de areia fina e branca, impressionante, parece açúcar, com requebros de cetim levemente nacarado. Recolhi algumas pedras de cores e formas ornamentais, apenas algumas cores. E não fora o tino de evitar permanecer demasiado tempo num local isolado, e o tempo tinha parado sem vontade de regresso, só o silêncio do ruído do marulhar do vento, do pipiar dos pássaros, do perpassar de um ar rarefeito e branco, quente e roçagante como só o bafo de áfrica.


As curvas da serra da Leba, a desafiar as leis do equilíbrio e da gravidade, estiram-se a perder de vista, tira de asfalto a emitar serpentina de carnaval, vigiadas por panos de falésia que parecem tapeçarias, as rochas coloridas ocres, antracite e verdes ton-sur-ton “ pintadas “ por mão de artista. Mais uma sessão de deslumbrada pasmaceira, desta vez em sossego porque havia gente por perto, e um custoso despegar.


De novo 400km de picada, e quase sete horas depois Benguela, só que desta vez de dia, o mesmo cansaço de criar bicho conquanto o inesperado da paisagem: sanzalas de cubatas de pau-a-pique, redondas e com tampinha de colmo, espalhadas entre palmeiras nos terreiros muito varridos - a cultura do lixo a montes é efeito de deslocados de guerra, só pode ser… -, crianças descalças e roupas espantalhadas a gritar, e a dizer adeus, à passagem do carro, homens e mulheres, com panos coloridos e toucados de domingo, estrada, picada, fora, e o aceno, e o sorriso de gente que nada tem, ou assim nos parece, que eles podem ter outra ideia, que vive no meio do nada e parece ir de nada p’ra nenhures, e aqui e agora o negóciozito de beira de estrada, estaminés improvisados a chamar a atenção dos viajantes. Na picada – a estrada Benguela-Lubango está em (re)construção - circulam frequentes e desvairados camiões das obras, a levantar cortinas de poeira, e uns camiõezitos de carga que fariam as delícias de qualquer museu de transportes, muito ronceiros e a segurar umas grandes trouxas a esbordar, as cargas , que fazem lembrar gelados de cone a começar a derreter. Só visto.


Os bosques de acácias que anunciam a chegada a Benguela, a cidade das acácias rubras, mesclados de verde, ocre e magenta , pintam as encostas das serras já com os cocurutos a encarapinhar de vegetação, que a época das chuvas está a começar e já se nota na cobertura dos montes, assim como já estão a aparecer os rios que desaparecem no cacimbo.
Já em Benguela, numa bela esplanada à beira mar, praia e passeio marítimo a fervilhar de gente, arrotam uns descoloridos expatriados, barrigas e bigodes farfalhudos, senhores de boçalidades que só o portugués das berças consegue, estiraçados nas cadeiras a ver passar os pretos, e as pretas, que dos pretos que os servem à mesa devem entender o trato e a dignidade do porte como coisa de escravo submisso; felizmente estavam bem afastados, foi só vê-los, não ouvi-los. Mas entretanto tivemos direito a ouvir uma senhora, na casa dos 30-40, a idade mais frequente dos portugueses que cá trabalham, quadro de empresa portuguesa, a dar conta da ida frustrada, e frustrante, à praia da Caotinha, lugar de rara beleza no meio do capim, e da picada que atravessa uma pequena aldeia - sanzala de cubatas - de talvez pescadores, porque encontrou o sítio cheio de gente, “ eles resolveram ir todos p’ra praia, logo aquela”, montaram merenda e bailarico, e nem se podia entrar na água “porque se ia apanhar com as focas em cima”; as focas são os pretos, claro, e está bom de ver que a pretalhada não tem nada que se ir, a pé ou de excursão ( de candongueiro) para as praias que os jipões dos branquelas elegem como destino de fim de semana. Está certo! E ainda acrescentou uma história de pasmar a respeito de 3 gatos que tinha ali na zona, que visitava volta e meia, e eles quase que amuavam, todos com nome de gente, e a gente meio varada a perguntar “e como sobrevivem esses gatos”, e a resposta despachada “ eles estão lá na aldeia, vão comendo da comida lá deles e durante o dia tb comem umas vagens das árvores, acho que alfarroba, ….”, insiste-se no mal alimentado dos tais gatos, “ que sim, que estariam mal alimentados, mas ..”, mas faz parte, acrescento eu, afinal são pretinhos. E gente, meninos, percebemos no fim da conversa. Incrível! Começo a ter de mudar os meus conceitos de desenvolvimento….
Os 600 km de Benguela a Luanda, estrada fora, passaram ao tom e ao som de kimbos, sanzalas, gentes e feirinhas de beira d’estrada, e dos mtos rebanhos e manadas que se pavoneiam pelos campos, matas e capins, e que têm especial predilecção pelo asfalto: é vê-los a atravessar nas calmas, as vacas pachorentíssimas, quando não especados, a fazer de estátua bem no meio da estrada! Tenho para mim que o asfalto há-de criar confusão nos cascos….
Luanda, 29 set. 2008

Desta vez a viagem foi até ao Lubango, cerca de 1000 km a sul de Luanda. Começou às 5h00 de 6ª feira e acabou às 22h00, recheada de peripécias mais irritantes do que divertidas, a começar pela avaria do jipe adiante de Benguela, numa estrada larga e asfaltada de fresco, àquela hora, meio da manhã, com pouco trânsito, e como não havia rede de telemóvel, o recurso foi pedir ajuda a quem passava, e logo uma carrinha com 2 angolanos se aprontaram para ajudar, do carro saía fumo e como não tínhamos água eles foram de pronto buscar uma garrafa que levavam p/ a viagem; tentaram improvisar conserto mas como a coisa era séria sugeriram retorno a Benguela e ajudaram-nos a pedir boleia que foi dada por 1 senhora, + as crianças no carrito apertado, que nos foi levar à porta do escritório da empresa apesar do seu destino ser algures à entrada da cidade. Tudo com mta simpatia, sorrisos e angolana cordialidade. De novo em direcção ao carro imobilizado, mecânico e ferramentas à mistura, constatou-se que era caso p/ reboque e nós tb acabámos rebocados por um funcionário, expatriado, até ao estaleiro mais próximo onde nos seria entregue outra viatura, e pelo caminho o homem foi debitando, entre “buocês”, gajos e pretos, palpites sobre tudo e todos, um maioral. No final da corrida esperava-nos uma carrinha imunda, que de pronto foi mandada enxaguar só p’ro disfarce, aviaram-nos, com prontidão e por iniciativa própria, umas sandes no refeitório, e desejaram-nos umas “boas”(??) seis horas de viagem até ao Lubango, por veredas e (des)picadas, sem rede de tlmv, através de matas e morros e gente nenhures, apenas alguns kimbos, aldeias impensáveis, no meio do mato, com o sol a fugir perigosa/ por detrás das serras, e logo noite. Não vale a pena gastar mta tinta c/ esta descrição mas o pedacito de asfalto, e luzes, e rede que precederam a entrada na cidade foi maravilha e maravilhosa a vista da praça central, ajardinada, iluminada e enquadrada por belos e conservados edifícios, um espanto que nem Luanda cidade capital, como cá se diz, mais o alívio de confirmar ainda confirmado o quarto no hotel, a preceito, desenfarruscar num banho quente e cair na cama antes de cair no chão tais as tonturas e o cansaço. Resumindo, se a tensão, não o susto.., se pudesse partir em fatias grossas e comer tínhamos chegado ao fim da sessão de estrebuchos e sacões empanturrados e mudos, de tanto desusar a fala, só olhos postos na picada, aqui e agora desviada por causa das obras, e a poeira, e o nevoeiro (!!??), e a trovoada a seguir-nos de longe em repentes de iluminação. Aventura p’ra contar e não p’ra repetir.
O Lubango, já se disse, surpreende pelo aprumo de casas e jardins, mto floridos e com relva, pela pacatez de tráfegos e gentes, e está erguida numa terra, a Huíla, de serras e planalto e belezas sem par. Dia e meio de permanência deu p/ cheirar, e pasmar!
A fenda da Tundavala, impressionante greta na montanha que se debruça sobre um extenso vale debruado de cordilheiras, serra da Chela, serra da Leba, é um santuário de artes, pintura e escultura, naturais; nem sei se impressiona mais a forma caprichosa e rebuscada das pedras sobrepostas ou se a cor delas. As esculturas são imponentes, a desafiar a imaginação e a lei da gravidade, e em pano de fundo a montanha rasga-se em tons de azul, antracite, ocres e verdes espantosos, as rochas pintalgadas erm jeitos de pintura, motivos geométricos, escaqueiradas e espalhadas pelo chão que é de areia fina e branca, impressionante, parece açúcar, com requebros de cetim leve/ nacarado. Recolhi algumas pedras de cores e formas ornamentais, apenas algumas cores. E não fora o tino de evitar permanecer demasiado tempo num local isolado, e o tempo tinha parado sem vontade de regresso, só o silêncio do ruído do marulhar do vento, do pipiar dos pássaros, do perpassar de um ar rarefeito e branco, quente e roçagante como só o bafo de áfrica.
As curvas da serra da Leba, a desafiar as leis do equilíbrio e da gravidade, estiram-se a perder de vista, tira de asfalto a emitar serpentina de carnaval, vigiadas por panos de falésia que parecem tapeçarias, as rochas coloridas ocres, antracite e verdes ton-sur-ton “ pintadas “ por mão de artista. Mais uma sessão de deslumbrada pasmaceira, desta vez em sossego porque havia gente por perto, e um custoso despegar.
De novo 400km de picada, e quase sete horas depois Benguela, só que desta vez de dia, o mesmo cansaço de criar bicho conquanto o inesperado da paisagem: sanzalas de cubatas de pau-a-pique, redondas e com tampinha de colmo, espalhadas entre palmeiras nos terreiros mto varridos - a cultura do lixo a montes é efeito de deslocados de guerra, só pode ser… -, crianças descalças e roupas espantalhadas a gritar, e a dizer adeus, à passagem do carro, homens e mulheres, com panos coloridos e toucados de domingo, estrada, picada, fora, e o aceno, e o sorriso de gente que nada tem, ou assim nos parece, que eles podem ter outra ideia, que vive no meio do nada e parece ir de nada p’ra nenhures, e aqui e agora o negóciozito de beira de estrada, estaminés improvisados a chamar a atençaõ dos viajantes. Na picada – a estrada Benguela-Lubango está em (re)construção - circulam frequentes e desvairados camiões das obras, a levantar cortinas de poeira, e uns c amiõezitos de carga que fariam as delícias de qualquer museu de transportes, mto ronceiros e a segurar umas grandes trouxas a esbordar, as cargas , que fazem lembrar gelados de cone a começar a derreter. Só visto.
Os bosques de acácias que anunciam a chegada a Benguela, a cidade , outrora, das acácias rubras, mesclados de verde, ocre e magenta , pintam as encostas das serras já com os cocurutos a encarapinhar de vegetação, que a época das chuvas está a começar e já se nota na cobertura dos montes, assim como já estão a aparecer os rios que desaparecem no cacimbo.
Já em Benguela, numa bela esplanada à beira mar, praia e passeio marítmo a fervilhar de gente, arrotam uns descoloridos expatriados, barrigas e bigodes farfalhudos, senhores de boçalidades que só o portugués das berças consegue, estiraçados nas cadeiras a ver passar os pretos, e as pretas, que dos pretos que os servem à mesa devem entender o trato e a dignidade do porte como coisa de escravo submisso; feliz/ estavam bem afastados, foi só vê-los, não ouvi-los. Mas entretanto tivemos direito a ouvir uma senhora, na casa dos 30-40, a idade + frequente dos portugueses que cá trabalham, quadro de empresa portuguesa, a dar conta da ida frustrada, e frustrante, à praia da Caotinha, lugar de rara beleza no meio do capim, e da picada que atravessa uma pequena aldeia - sanzala de cubatas - de talvez pescadores, porque encontrou o sítio cheio de gente, “ eles resolveram ir todos p’ra praia, logo aquela”, montaram merenda e bailarico, e nem se podia entrar na água “porque se ia apanhar com as focas em cima”; as focas são os pretos, claro, e está bom de ver que a pretalhada não tem nada que se ir, a pé ou de excursão ( de candongueiro) para as praias que os jipões dos branquelas elegem como destino de fim de semana. Está certo! E ainda acrescentou uma história de pasmar a respeito de 3 gatos que tinha ali na zona, que visitava volta e meia, e eles quase que amuavam, todos com nome de gente, e a gente meio varada a perguntar “e como sobrevivem esses gatos”, e a resposta despachada “ eles estão lá na aldeia, vão comendo da comida lá deles e durante o dia tb comem umas vagens das árvores, acho que alfarroba, ….”, insiste-se no mal alimentado dos tais gatos, “ que sim, que estariam mal alimentados, mas ..”, mas faz parte, acrescento eu, afinal são pretinhos. E gente, meninos, percebemos no fim da conversa. Incrível! Começo a ter de mudar os meus conceitos de desenvolvimento….
Os 600 km de Benguela a Luanda, estrada fora, passaram ao tom e ao som de kimbos, sanzalas, gentes e feirinhas de beira d’estrada, e dos mtos rebanhos e manadas que se pavoneiam pelos campos, matas e capins, e que têm especial predilecção pelo asfalto: é vê-los a atravessar nas calmas, as vacas pachorentíssimas, quando não especados, a fazer de estátua bem no meio da estrada! Tenho para mim que o asfalto há-de criar confusão nos cascos….
Luanda, 29 set. 2008

quarta-feira, 25 de março de 2009

Crónicas do deserto

Crónicas do deserto: 4º dia – Um sabor a pouco e um querer mais.



A última alvorada vestiu-se olheirenta, mas feliz como um cuco, resmoneando as inusitadas falhas de água da albergaria, mal explicadas e menos aceitáveis, e nem a risota nem as piadas de ocasião conseguiam espantar a certeza de que a “expedição” estava a caminhar para o fim. Este era o último dia. O primeiro da convicção de que a próxima já estará alinhavada. O chefe-da-caravana, o insubstituível luso-angolano nascido no Namibe, cuja paixão pela terra a todos contagia, não fez orelhas moucas às sucessivas provocações do “a-seguir-onde-vamos?”, e mentalmente foi riscando um novo, o próximo, percurso. Adiante, que a caravana está em movimento.

No centro da cidade o carnaval do Lubango soltava-se ao som de ritmados corpos e batuques, num registo de máscaras e fantasias autóctones, deliciosamente primitivas e genuínas. Eflúvios de cor e som que se entranharam nos corpos ainda amolecidos que se iriam fazer à estrada, se Benguela se alcançaria já pela noite, Luanda lá para mais de mil quilómetros e vinte horas depois.

Repete-se o troço de cerca de 90 km de asfalto que se estende à saída do Lubango e mergulha-se em pleno mato, no país profundo de picadas, kimbos de cubatas e palhotas, gente que se queda e move como só em África: é uma outra insustentável leveza do ser! Que insidiosamente nos corrompe e seduz. Fica-se apegado..

O perfil cinza-azulado das montanhas que ora se mostram ora se agacham na imensidão da savana, farta cabeleira verde capim solto à brisa, árvores que se agigantam a esparramar folhagem, e donde a onde só os cocurutos das cubatas se adivinham, e a picada segue rasgando a terra vermelha, revoadas de pó nas curvas e contracurvas, o colorido dos panos e dos frutos na quase solitária venda improvisada à sombra do caminho.

Por aqui é território das mulembas, árvore real angolana dos mitos e das tradições, senhoras de grande porte e impressionante figura. Num país de expressiva cultura falocrática, cuja expressão mais prosiaca é a preocupante violência doméstica que afecta sobretudo as mulheres, não é de todo garantido que a matriarca não faça impôr a sua força e vontade. Porque são de força e vontade as mulheres desta terra: labutam, acartam, amanham a terra, o comer, os filhos e o sustento da família. E em nome dos costumes levam pancada. E continuam de pé, quais mulembas. Mulembas, essas grandes árvores redondas, uterinas, soltando as longas tranças de folhagem em jeito de quem dá colo, e a gente sente que a terra é delas e delas emana o poder da natureza. Talvez por isso o majestático embondeiro, senhor de grande garbo e beleza, se não afoite por estas bandas, num recatado pacto de respeito territorial. Há-de chegar-se mais acima, lá onde o planalto se começa a esgueirar para o mar, e há-de chegar de mansinho, ora mirando ora se quase encostando à mulemba, juntos soberbos, antropomórficas figuras povoando e rendilhando as lonjuras de céu e terra , anunciando ela as despedidas, mostra-se arisca, arredia, e ele vai continuando quase só, cada vez mais só, hierático, garbosamente erguendo a cabeça de trunfa estendida, até que se acomoda em seus senhoriais domínios. E nos há-se guiar até Luanda, sem sobressaltos.

É já madrugada alegre quando o grupo se despede nas imediações da ponte sobre o Kuanza.
Dos vinte e oito aventureiros que se haviam juntado para descer ao deserto do Namibe sobram vinte e cinco promessas de se voltarem a juntar para a próxima expedição. Pelo caminho ficaram carros e tripulantes , destes os três e respectiva viatura que avariou logo no primeiro dia, mas foi e veio um bom quarteirão de entusiasmo, tenacidade, resistência e muita, muita mesmo, alegria solidária.

Cumpriu-se a “profecia”: ficou um sabor a pouco e um querer mais.

Luanda, 24 Fev. 2009

Crónicas do deserto

Crónicas do deserto: 3º dia – O rio das sete e meia.



O sol vai chegando envergonhado, sorrateiro, a luz coada entre as nuvens vai sorvendo o céu estrelado, o acampamento abre os olhos e espreguiça-se. Em breve vai abalar, emaladas as tendas, e a caravana vai rodar ainda deserto adentro, para sul, antes de iniciar a volta de regresso.

Há no ar transparente que se respira como que um formigueiro de ansiedade, um querer tudo ver, sentir, nada perder, que contrasta com a serenidade que nos incha o peito, olhos e alma lavados, pequenos grãos de areia rolando na imensidão do deserto, “em bebedeiras de azul”, diria o poeta, por certo bêbedos de êxtase e emoção. Sabíamo-nos a começar o fim do devaneio e a sofreguidão ia soltando esporas.

Sulcam-se os trilhos de tremedeira constante em espasmos de poeira, ali as gazelas que de longe nos miram em poses estudadas e logo esvoaçam a galope, aqui a surpresa do desfile da paisagem, qual passarela onde se sucedem estilos e modelos. São as rochas em arrojados equilíbrios, a penedia matizada de tons e formas onde tufos de verde se encarrapitam, as dunas que não se alcançam nem as areias, agora pedras e pedregulhos, e logo dum lado a encosta perlada de pompons verdes a fazer inveja às pintas sardentas da que do outro lado se perfila. Mudam-se as cores, mudam-se as plantas, muda-se o chão que se pisa e a vista em redor, só as espinheiras, arbustos que parecem espanadores enterrados de cabo para o ar, vão saltitando ao longo do percurso, pequenas e grandes, sempre a deixar escorrer uma rodelinha de sombra, abrigo de gente e de bichos.

O embasbacamento havia de nos pegar sem aviso quando nos deparámos com o rio caudaloso que corria lesto e cantante a rasar o sopé de imponente falésia, vale adiante, na margem uns repolhudos tufos verde-alface, na outra banda flutuava o esqueleto de uma qualquer viatura que não se percebia como ali tinha vindo parar. Este era o rio que tinha chegado às 7h30 da manhã, tal qual!!, rio de aguada, fruto das chuvas caídas algures a montante. Se mais não chovesse daí a dois dias já não haveria rio. No leito seco atravessa a “estrada” por onde se escoam mercadoria e gado que, como se viu, podem ser apanhados na correnteza, daí a carcaça flutuante. Disto nos foi dando conta um camionista de ocasião, nativo, posto em sossego até que o rio se fizesse de novo estrada. Para ele tão natural como a natureza. E nós varados! E os geólogos, de gosto ou de formação, que andavam de catarpácio em riste a conferir mapas e traçados a exultar satisfação. É o deserto que não pára de nos surpreender. E tudo quanto se possa dizer ou escrever fica aquém. Este deserto é homem de paixão vivida, corpo a corpo, olhos nos olhos, um outro modo de revisitar o “império dos sentidos”. Vive-se, frui-se, recorda-se para sempre.

A jornada estava longe de chegar ao fim, rumar à lagoa do Arco era o destino não sem antes uma abordagem ao oásis atravessando um riacho, filhote do rio das sete e meia, água a cobrir os rodados e nem todos os carros a meter-se nelas não fosse o diabo tecê-las, que isto de jipes também é consante as posses. Porém da tremedeira, solavancos e sacolejos haveria de ficar registo, uns tantos furos a retardar viagem e a esfalfar os incansáveis tripulantes do carro de apoio. Onde todos ajudam nada custa mas…..

À lagoa de crépon azul-turquesa, onde alcatifas de nenúfares se estendiam, arriba-se por entre vegetação frondosa emoldurada por aglomerados rochosos de cor dourada e muitos arrebiques, que se abrem em arcos torneados a espreitar de cima o lago. Da aridez e imponência do deserto temos lembrança, a inclemência do sol não é fingimento, há um estremecer de brisa na folhagem e um rebuliço de gentes, visitantes e habitantes, poucos, a família do curador, meninos alinhados como ervilhas de greiro, todos tão seguidos e tão pequeninos, que a mãe de pronto arruma para a fotografia. E são sorrisos e adeuses e a alegria de receber, e a nossa de sermos recebidos.
De volta aos trilhos, que as picadas do deserto são cheias de personalidade, a caravana toma de novo o rumo da cidade do Namibe, onde se aportará pelas cinco da tarde em ânsias de petisqueira e bebidas frescas. Faz-se poiso na esplanada de um restaurantezinho em frente ao mar, que nos haverá de brindar com um corropio de carnudos caranguejos da terra, ou seja, do mar dali, que apajearam um inesquecivelmente sápido arroz de lagosta com feijão, nunca antes visto, porém supimpa. Foi fartar vilanagem!

Até que a noite se abeirou, a caravana se pôs de novo em marcha, aconchegados os corpos e regalados os espíritos, rumo ao Lubango, curvas da Leba no entretanto. E neste entretanto haveria de acontecer a última baixa: mais um carro que se ia abaixo, forçado a tratos de polé por barrancos, picadas, trilhos e solavancos, muitos. Continuam inabalavelmente em pista os vinte e cinco “expedicionários” que resistiram aos abalos do primeiro dia. Abatem-se os carros, encolhem-se as bagagens e reacomodam-se as gentes.

Tudo se resolve, menos a espera na beira da estrada, horas a fio, por um reboque cujo rebocador motorista se deve ter perdido algures nas tasquinhas das curvas da serra. Ou lá o que foi. Do grupo avançaram alguns para o hotel, na esperança, vã, do banho retemperador, que de nada valia ficarem todos na berma da estrada a ver esperar. E o dia seguinte já estava a começar.

Namibe, 23 Fev 2009

Crónicas do deserto

Crónicas do deserto… - 2º dia: Fados e cantigas à volta da fogueira.


Já a alvorada se derretia nos luzeiros da manhã quando a caravana se recompôs dos desencontrados imprevistos da véspera. Era a serra da Leba a desafiar tudo e todos num cenário de cortar a respiração, tal a imponência, tal a majestade, tal a beleza, tal a justeza dos tamanhos e proporções. É a mãe natureza que nos confronta com a nossa pequenez. Sem apelo nem agravo.

Magnânima, a serra se nos desnuda em requebros e curvas voluptuosas , na cabeça a falésia emoldurada em geometrias de tons ocres e pastel , o torso reclinado em tufos encaracolados de verdes em matizes, aconchegado entre os picos violáceos que de largo se recortam na linha que separa o céu, se derramando em sustenidos de barrancos e ravinas até se aninhar no regaço do Namibe, terra dos mucubais, homens e mulheres trajando panos e adereços, os troncos nus, olhos cintilantes nos rostos de exótica beleza, posam para as fotos, dá-se-lhes dinheiro, mas são eles quem de verdade compra; compram o nosso civilizado espanto. Adiante temos encontro marcado com o Deserto, o senhor que a Leba recebe e acalenta. Numa recatada intimidade que os nossos assarapantados olhos apenas adivinham.

A estrada, qual fita de nastro a bordar ziguezagues na paisagem, esgueira-se formosa e segura até à cidade, a do Namibe, moçoila fresca e de cara lavada debruçada sobre a baía, e também os navios no porto, onde os barcos e pescadores, onde as areias brancas e cabriolas de meninos, onde o passeio marinho se afeita ao mar que mais parece um manto de crépon azul estiraçado. Aqui haveremos de voltar com maior ripanço.

Às portas do deserto, por alturas do plateau que se enfileira ao longe, a pista vai rasgando as cercanias, e tira-se tempo para o “garimpo” de ágatas e jaspes, que os mais entendidos catrapiscam para surpresa e gáudio dos demais.
Enquanto isso, a caravana vai rolando, a paisagem vai-se desfraldando em austeridades de viços e plantas, e há cubatas e palhotas que se avizinham e gente que se adivinha, e os redondos sensuais das dunas que se deitam p’ras bandas do mar, e os esculpidos nos rochedos, variados na forma, no tamanho e na cor. Sempre pasmosos! E lá está o território da famosa e mal encarada welwitschia, espécie de fóssil vivo, planta apenas existente no deserto do Namibe. Das welwitschias diz-se, e não será o caso, que são carnívoras, “comem” insectos, mas aquelas aparentes bocarras escancaradas em beiços negros que nem borracha de pneus mais parecem capazes de comer uns bons bifes. Fica a piada, espicaço de imaginação.

A aguardada surpresa do oásis vem-nos ao caminho, e mesmo assim o pasmo, que os caprichos da natureza póem de rasto os humanos arrebites, é o rio e a lagoa que refrescam a frondosa vegetação onde se abrigam as machambas dos mucubais ali acantonados em palhotas bem organizadas no terreno. Sem eufemismos ou figuras de estilo , em bom rigor e à letra, é o viver-no-meio-do-nada! Os mucubais aqui vivem e pastoreiam o seu gado, agarrados à sua terra e às suas tradições. E à nossa perplexidade dizem nada.

Pelas 6h da tarde o acampamento está montado na largueza do chão só antes pisado pelas pachorrentas vacas, quiçá outros bichos, que se nos acercam impávidas e serenas, e por ali se hão-de acomodar, que nem encenação de presépio, até à manhã do dia seguinte. Por enquanto carros e tendas se arredondam à volta da fogueira que se há-de acender. Saem uns a apanhar lenha, outros se quedam só embasbacados, a mirar os longes e os ruídos do silêncio que se impôem O sol vai-se afastando em pinceladas de cor e pasmo. O ar cálido e transparente vai roçagando as almas e os corpos. Em breve um fogo se incendeia entre um rodado de pedras.
São as febras no braseiro, é o tacho do macarrão que se intromete, é o todos comem e bebem num não distinguir de farneis, é o sentimento de pertença a espreitar no brilho dos olhos, é o todos juntos num só contentamento, é o gozo escorreito da liberdade a céu aberto. Um céu baixinho, veludo liso, onde rebrilham astros e estrelas nunca antes tão claramente vistos. É o soltar das gargantas e do riso. É o fado que se escoa de vozes abaritonadas não antes suspeitadas. São os versos e as redondilhas de que só se lembra a metade. É o fado e as cantigas à volta da fogueira.

Namibe, 22 Fev. 2009

Crónicas do deserto

Crónicas do deserto…. - 1º dia: o dia mais longo!

A concentração estava prevista para as 3h30 da madrugada de sábado, na praça 1º de Maio, em Luanda, embora a caravana viesse a ficar completa apenas em Viana, pelas 4h15 da manhã, ou melhor, da noite porque o sol ainda não era nascido. Assim, 28 “expedicionários”, distribuídos por 9 viaturas mais ou menos todo-o-terreno, adiante se verificará que nem todas aguentaram o terreno, abalaram alegremente rumo ao destino programado, Lubango, sem suspeitarem que iriam cumprir um programinha um tanto diferente. O que, atalhando, acabou por ser o dia das picadas longas, mais para uns do que para outros, mas todos tiveram direito a participar na maratona, a evocar a conhecida cinéfila, “os carros também se abatem”, sendo que alguns tripulantes até foram “abatidos” nos entrementes. Para que conste, a primeira baixa, por avaria mecânica, aconteceu logo no período da manhã, um carro e três ocupantes tiveram de volver a Luanda. Ao almoço marcado no Huambo não compareceram outros dois, cuja viatura, algures abalroada pelo desatino de um camionista em trajectória de colisão, se despistou, tombou e capotou. Felizmente sem danos pessoais!

Voltemos aos 28 da partida que se iriam soltar em animado, e cheio de genica, pequeno almoço ao ar livre, no Dondo, sob a vigilância tutelar da portentosa acácia aparentada que domina o largo central da vila, junto às margens do Kuanza, piquenique abrilhantado por ritmos kizombeiros debitados pelo que se viria a designar carro-de-som. Olá!

Abastecimentos concluídos, viaturas inclusive, ao romper das 7h00 a caravana fez-se de novo à estrada com destino ao Huambo, cerca de 470 km mais abaixo. Estavam feitos à volta de 200km em duas horas de viagem. Até aqui ainda vai de feição medir o tempo e a estrada porque mais adiante outras considerações se alevantarão, como se há-de ver. Para já podemos ver nove “jipes” de cores e feitios diferentes em ligeiríssima rodagem, não sem alguns divertidos e bem dispostos remoques ao piloto-chefe-da-caravana , “ o engenheiro se quiser ir sozinho….”, que é como quem diz, “faça favor, que a gente não tem pressa”, até ao primeiro desentorpecer de pernas, por alturas da aldeia do Catoto, onde entre risos, ritmos e gingarias foi introduzida a gajaja, novidade para quase todos, pequeno e apaladado frutinho amarelo que um espantado menino vendia na beira da estrada. A bem dizer foi por aqui que se deu a primeira baixa, ainda não eram 8 da manhã.

Segue a excursão e segue a magnífica paisagem que se vai alterando à medida que se avança para o planalto central. Saem de cena os embondeiros, a vegetação da savana vai ficando espessa, enovelada em arrebiques de verdes, os afloramentos rochosos, e caprichosos, começam a marcar a linha do horizonte, o ar a rarefazer-se em alturas, e vão ficando pelo caminho lugarejos de cubatas e topónimos curiosos, aldeia da Pedra Escrita e outros não registados. A pretexto de um café, paragem na Kibala, e já eram feitos mais cerca de 160 km dos já anunciados 470 até ao Huambo, terrinha luminosa e simpática emoldurada por majestosa penedia que seguiria de perto e altaneira, e a cada passo mais extravagante no capricho das formas e dos bicos, a estrada até ao Huambo, a cidade do planalto, a 2600m de altitude, que nos haveria de dar de almoço uma suculenta e sápida caldeirada de cabrito, à moda da terra, num restaurantezinho vindo do tempo colonial, de muitas memórias e saudade, soube-se, para quem por ali esmoeu dias da juventude, e que a alguns dos comensais, bem amesendados, suscitaria comentários do tipo “ o cabrito ainda tinha pêlos”, e pois pudera, se tivesse escamas é que seria de estranhar… E o pior seria que tão cedo, mal sabiam, não se poria o dente em iguaria que se lhe equivalesse, e se haveria de brindar à sopita rala de couves que alta noite e maior cansaço nos aguardava no pretensioso “hotel & lodge”, verdadeiro desperdício de oportunidade e da arte de bem servir, que nos iria acomodar, sem água e mais uns senãos, por algumas horas ,já entrado o 2º dia de viagem.

De novo feitos à estrada, o combustível a fazer-se pouco, e mais poucos ainda os postos de abastecimento abastecidos, paragem técnica numa bombazita em cus-de-judas enxameada de motoretas e bidões amarelos, enfileirados no terreiro ao sol, que pacificamente dão a vez aos afobados jipes excursionistas. Já Wako Kungo, a famosa aldeia agrícola onde um completo projecto israelita semeou kibutzs que viriam a gerar importantes unidades da produção nacional, 400km rodados, mais coisa menos coisa, e nova paragem técnica, em Águas Quentes, onde a nascente se encontrou destruída (??!!), no Alto Hama, desta vez para abastecimento de frutas; vendedeiras de beira de estrada, mulheres, meninas e meninos, alguns de mama, num alvoroço garrido de panos, alguidares e tigelas, e tagarelice de “pátrãao, ámiiiga, côompra, lêevaa”.

Da reconstrução anunciada da cidade do Huambo colhe-se bom proveito na ampla praça central ajardinada e ornada com pérgulas, esculturas e repuxos, bordejada por espaçosos, e pavimentados, passeios e avenidas, e rematada por esquadria de bem recuperados edifícios de traça colonial. No mais o casco urbano promete, e em igualmente recuperado há-de ser digno de visita.

Saindo do Huambo , a bela paisagem do planalto remira-se na tira de asfalto até à Caála, a partir donde a jornada será por desvios e picadas até quase à chegada ao Lubango, na Huíla, a cerca de 400km e 6 horas de viagem, a correr bem. Sucedem-se as curvas e os desvãos, os solavancos e os sacolejos, efeito picadora accionado, atravessam-se pontes impensáveis num ranger e saltar de tabuinhas, as objectivas vão disparando num registo de fotos de pasmar, e pasmados nós também, até que o imponderável acontece: uma das viaturas não resiste ao massacre dos amortecedores e afocinha; dali não sai, dali ninguém a tira; o que a avaliar pelas condições envolventes corria sérios riscos de ser levado à letra. Foi por pouco, ufff…..

Naquele fim-de-mundo, onde o diabo perdeu as botas, nem apoio nem recurso, nem rede de telemóvel, apenas uns intrigados e curiosos habitantes dum kimbo desgarrado, as crianças apinhadas num só espanto, as mulheres a fazer de conta no pasmo e os homens a darem um ar de sua graça, comme il faut, e a avisarem que oficina só no município mais próximo, já ali, a kilómetros de distancia, e de impotência, que de nada a afoiteza dos técnicos de serviço, e do carro de apoio, podia valer. Conversa entaramelada com os simpáticos indígenas, debicando sandes e palpites, a noite a anunciar-se num impressionante céu de borrasca, enquanto um jipe já partira em busca de reboque ou oficina. Eis senão quando, no meio do nada, surge rodando pesada e desconjuntadamente um porta-máquinas, uma zorra mesmo a propósito. Encetadas curtas negociações com o solitário motorista, em penoso trânsito para o Lubango, de pronto o carro acidentado é montado em cima do atrelado que, uma vez aprontado, também de pronto se revela avariado, “desamortecido”. Donde, bem se diz que uma desgraça nunca vem só. Mas também se diz que não há mal que nunca acabe, e disso se encarregaram os especialistas da caravana, engenheirando ali mesmo a avaria. E era já noite feita quando o cortejo se pôs de novo em marcha rumo ao estaleiro mais próximo, a uns bons quilómetros de distância. E quis a sorte que tal houvesse, um posto avançado de empresa de obras públicas conhecida, porque a ela ligado um dos expedicionários, pasme-se!, onde a viatura seria deixada em guarda e repouso. Repouso dela porque o nosso, grupo do carro acidentado e acompanhantes, ainda andaria muito arredado e custoso. Enquanto tudo isto, a caravana desmembrou-se, seguiram viagem os demais, e tarde baldadamente se fazia.

Nas proximidades da quase recta de 90 km de asfalto que leva à cidade foi um desatino na noite de breu, entretanto raios e coriscos, sinalização nem vê-la, e a entrada para a estrada do Lubango disfarçada de barrancos e veredas, a tardar. E finalmente vislumbrada, os corpos entorpecidos pelo sacolejar de horas e cansaços, ala que se faz tarde, só a ideia de um banho quente e retemperador anima as almas e os aceleradores. O “hotel & lodge” não se mostrou à altura. Eram quase 3h30 horas da manhã do segundo dia. Estavam cumpridas as primeiras 24 horas.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Preparando o raide ao deserto do Namibe

O encontro foi marcado em Sangano, com almoço no “Careca”, bar da praia. O pretexto, se pretexto preciso fosse para rumar à beira-mar, era preparar a expedição ao deserto do Namibe, designação talvez pomposa para a passeata que se avizinhava e a que o empenhado grupo organizador, e isto sim é exagero porque, ao que sei, são apenas duas pessoas a trabalhar, deu o nome de “ 1º raide deserto do Namibe”*. Dos dois “carolas”, ambos de lusa nacionalidade, um é angolano de nascimento, de pátria e de coração, apaixonado pela terra e pelas gentes, capaz de galgar estradas e picadas, sobretudo picadas, prefere, em busca de um naco de paisagem num recanto da natureza. E fá-lo com tal alegria e afinco que arrasta outros, porventura menos afoitos, na corrida. Neste caso deu em raide. E vão fazer-se à estrada mais de trinta patrícios, distribuídos por doze “jipes”. Não fica nada mal chamar-lhe raide….

A manhã foi escorrendo mansa na extensão do areal, a caminhada solta à borda-d’água, a cada passo mar adentro, com modos, que mesmo se se não mostra alteroso não é para brincadeiras, é senhor de respeito, a água a refrescar, sem arrepiar, os corpos espevitados pelo sol, senhor de larguezas, a espraiar-se despudoradamente sobre a praia. Sem sombra nem abrigo, larga faixa de areias claras à beira-mar estendida.

A dado trecho, lá para os lados do “Careca”, a aldeia dos pescadores , casas-cubatas colmadas, e estendais de seca do peixe, entrincheiradas por entre palmeiras e arbustos, vai-se desamodorrando das lides caseiras e vai dando à praia garridice de mulheres e revoadas de putos, seminus, porque à praia começam a dar os barcos saídos cedo para a faina. Os homens puxam os barcos, e todos ajudam, amanham o peixe logo ali e com poucas palavras, compenetrados no seu labor, vão fazendo o preço ao peixe que grupos de veraneantes se aprestam a querer comprar. Quando se avista o barco a chegar é um vê-se-te-avias de pretendentes, malas térmicas acauteladas, a espreitar o bojo atascado de peixes, a pasmar pelos tamanhos e variedade, a propôr a compra de ocasião, e os homens, os pescadores, como se não fosse nada com eles, vão fazendo o negócio. E bom negócio faz quem compra, ora bem, que peixe assim tão fresco e tão à mão não é oportunidade que se desperdice; em Luanda, se se lhe chegar, há-de custar talvez quatro ou cinco vezes mais. Alguém ganhará com isso que não o pescador.

Enquanto a azáfama de chega e puxa barco, mira e compra peixe, todos aparentemente se amontoam, turistas e nativos, mas o certo é que novidade é para os que chegam, porque os outros, os habitantes da aldeia, não parecem minimamente afectados pelo reboliço, dão-se à rotina do trabalho, reservados e indiferentes, como senhores do sítio, que o são: na praia nascem, crescem e vivem, e, se não no mar, morrem. Dos que chegam a banhos e partem ao entardecer observam os gestos e os costumes, de soslaio, sem se darem por achados. Gente com dignidade.

Chegada a hora do almoço, o sol a pino a esbrasear tudo e todos, a sede aperta e até já se come com os olhos. Os petiscos amariscados aprumam-se na mesa enquanto se aguarda o misto de peixe grelhado: lagosta, linguado, corvina, garoupa, de tudo um pouco e a contento dos gostos. De caminho vai-se apalavrando a viagem, acertam-se pormenores, e os chamados chefes de viatura, os homens desta faina, previnem-se com mais uma cópia do road-book, que a viagem é dura, impõe-se o respeito das regras , e não pode haver desculpas por alegado desconhecimento do acordado e estipulado. Está tudo escrito, e à disposição dos excursionistas, na brochura “ 1º RAIDE Edifer Angola”*, também acessível em http://ediferangolatt.blogspot.com/.

Para já está prevista a partida no próximo sábado, dia 21 , às 3h30, concentração no Largo 1º de Maio, em Luanda; almoço no Huambo e dormida no Lubango. O dia promete e os que se lhe seguem não lhe ficam atrás. Que a alegria e a boa disposição acompanhem a jornada. Que o lavar de olhos das lonjuras e o desenxovalhar de alma da beleza das paisagens engulam a poeira, o calor e o cansaço. Que do raide nos fique um saber a pouco e um querer mais.

Luanda, 19 Fevereiro 2009

*“ 1º RAIDE Edifer - Angola, Deserto do Namibe, 21 a 24 Fevereiro 2009”