segunda-feira, 29 de junho de 2009

O insustentável peso da pobreza

Há dias em conversa com um responsável de um gabinete da “ajuda internacional” sediada em Angola, e dado o contexto profissional da ocorrência, pasmei ao ouvir dizer que os doadores tradicionais estão progressivamente a abandonar o país, agora não mais em situação de emergência, a carecer da ajuda humanitária de que beneficiou em tempos de guerra. E o argumento será o de que já não é necessário, o país é rico e tem muitos recursos, e a pobreza já não mora aqui. E, ouvi ainda, não falta quem, vivendo em Luanda, confirme esta desnecessidade, argumentando que poderá haver algumas bolsas de pobreza, talvez nas periferias, nada porém que justifique a por alguns alardeada miséria generalizada. Essa, ou dessa, já não há. Estamos a falar de estrangeiros residentes, quiçá representantes de organismos ditos humanitários, empenhados no processo de desenvolvimento em curso, o negócio da reconstrução, digo eu, processo esse que, pelos vistos, não põe as pessoas em primeiro lugar (??!!!) como no tal período da emergência. Não consegui calar o pasmo, apesar do melindre da situação, , e perguntei se esse “já não há” é eufemismo de discurso oficial para afinarem todos pelo mesmo diapasão, os de fora e os de dentro, porque o que há até um cego vê, a não ser que seja um que não quer ver. E a resposta veio pronta, não, dependendo do como-e- onde-se-vive e do com-quem-se-convive, as pessoas não se apercebem da pobreza que anda à solta!!? Estamos conversados.

Da janela do ar condicionado, trancado, basta entrar na ilha de Luanda, a mítica e efabulada ilha de todos os contrastes para nos bater de frente a emergência do insustentável peso da pobreza. A ilha deprime-me. A ilha assusta-me. A ilha inibe-me, Não deito a cabeça de fora nem ponho o pé no chão. A eito não, só nos sítios onde-como-e-com-quem. E se há sítios a não ficar nada atrás de qualquer riviera que se preze é na ilha. E se há requinte, qualidade, bom gosto e diversão, e uma carteira recheada também se recomenda, é na ilha. Já por lá andei e gostei. Não muito, porque não sou muito in, porque não ando a esfarrapar dinheiro a rodos, e porque não gosto, já o disse, de andar cá fora.Gosto mas é depois de estar lá dentro, nos sítios. Onde a noite se aconchega no sussurrar das palmeiras a debruar os tablados donde se escoa a música-ambiente que adoça os brilhos do mar ali ao pé, e a brisa sopra os penachos dos coqueteiles das petisqueiras. Com estacionamento vigiado, sem o indizível bafo de todos os detritos, nem a comichão da lama e da poeira nem a impertinência da pedinchice que nos encabula e entala, e por ser tanta intimida, e pode atacar, que a pobreza não é apenas sina de desgraçadinhos, é também forja de vícios, e o de roubar e matar não é só fumaça de loucos. É a desavergonhada miséria, galdéria destravada a desbundar maus costumes. Insensível à beleza da ilha, a espatifar a floresta que só estorva e a conspurcar as areias que não seguram os casebres em noites de calema, a rondar manhosa as casas dos ricos e a farejar o golpe nos sítios onde eles se poisam.
Nas raizes dos “ilheus” há kiandas que se banham no mar em noites de luar, há bairros que se afundam no areal sobrante da desmatação urbana, há velhos encarquilhados na desmesura do nada-é-como-era e meninos largados no vozeirão do agora-cada-um-que-se-amanhe. E numa noite de calemas foram engolidas duzentas habitações, calamidade natural, e o bairro teve de ser evacuado e o povo foi para um abrigo temporário anunciado, campo de tendas a milhas dali, até que se lhes reconstrua outra vida, noutro sítio. E depois veio uma noite de negligência de vela mal ardida e sessenta residências arderam e o povo teve de ser evacuado e foi para um abrigo temporário anunciado, et ceatera, até que….

A ilha vai mudar, o anúncio é oficial, a ilha vai ser o sítio mais bonito de Luanda, moderno, arrojado, poiso de todas as vanguardas, e “as mamãs da ilha nada têm que recear”, master dixit. Hão-de voltar e tudo vai ser como dantes. A cada um o seu sítio. Pois então.


Luanda, 15 junho 2009

Por Calandula a Malanje ...

O fim de semana prolongado convidava ao passeio fora de portas, porém, a alegada sobrelotação de hoteis e quejandos, nos destinos mais cobiçados, forçou a saída antes do raiar do sol, num ir e vir de assentada a terras de Malanje.

Em tempo de cacimbo os dias são bem mais curtos, daí a partida de Luanda pelas cinco da manhã, noite ainda, rumo às quedas de água de Calandula, na província de Malanje, sendo que o regresso já então se adivinhava noite fora, pois que pouco depois das seis da tarde anoitece e viajar de noite é acto aventureiro. As estradas não são iluminadas, claro, nem a iluminação pública, que a não há, se incendeia a torto e a direito pelas larguezas deste país imenso e despovoado, onde aldeias de palhotas ou de blocos de argila, amarela e vermellha, a dar à paisagem uns esbatidos de côr por debaixo das cabeleiras escuras dos colmos dos telhados, se aninham no mato, o capim ainda alto na chana e a floresta a reverdejar intumescida das chuvas que se foram faz pouco. Do onde-a-onde das sanzalas ao faz-de- conta de vilas e cidades, a maior parte estropiadas, mutiladas de guerra embrulhadas no manto andrajoso do musseque de pobrezas sem fim, acender públicos luzeiros para alumiar forasteiros em trânsito não é necessariamente a primeira necessidade. A energia eléctrica, a desejada, quando aqui chegar há-de encontrar melhor poiso em hospitais, centros comunais, escolas e demais, antes de desaguar em néons achinesados a semear honguekongues de imitação que têm tudo a ver com o que não combina com estas terras nem com a sua tradição. Passe o preconceito cultural que a segundo plano vota o conforto das lâmpadas, salvaguardado o direito ao bem-estar das gentes que aqui vivem, não há luzeiro mais belo que uma noite de luar, no mato. Sobretudo para quem está de passagem, viajando…

Viajando, e do perigo anunciado de o fazer de noite se precaver, pois as possibilidades são infinitas: ele são os carros, ligeiros ou pesados, mesmo os pesadíssimos, que circulam sem nenhuma ou muito fraca luz, e quando não em contra-mão; ele são as avarias sinalizadas com montinhos de predras e ramos, e quem os vê?!!; ele são os inesperados e lunares buracos que podem aparecer, e quando menos se espera; ele são os peões solitários que deambulam estrada fora, fora das bermas, quantas vezes fora de toda e qualquer ajuizada prudência. Para não falar no risco permanente de se apanhar com a insana condução, assassina, em excesso de velocidade e estado de embriaguez, tudo a subir à medida que a noite sobe. Depois, ou antes de mais, ao aproximar das povoações , há carreiros de gente, homens no regresso do trabalho, mulheres saídas das lavras, cachos de putos a serigaitar, tudo caminhando na beira da estrada. E umas trouxas de cabras enroladas a dormir também lá podem estar, na estrada, sem luz. E desta viagem me ficou a imagem de N’Dalatando, cidade que antes da guerra era jardim, hoje capital de província, ainda sob o efeito pós-traumático, macilenta e mal trajada, muito cheia de avenidas alcatroadas e desguarnecidas, à espera de melhores dias, que na noite se adivinha luzindo como uma procissão de velas, umas dezenas. E gente, muita gente a encarreirar estrada adiante.Quando crescer esta cidade vai ser grande. Hei-de voltar para ver. E vai valer a pena.
Como valeu a pena dar um salto a Malanje, cidade ainda modesta, porém formosa e aperaltada. A chegada faz-se por entre um renque de árvores, talvez acácias aparentadas, meote branco, qual estrada-alameda, e não se avista o musseque, apenas uns bairros de casitas alinhadas, pintadas de fresco algumas, desenxovalhadas todas. Estranhamente, e com deliciada surpresa, o lençol esfarrapado e pardacento, pejado de lixo, viveiro de “macrobianas” misérias, não se faz aparecido aos olhos do visitante. Na praça central, belos edifícios da era colonial em esquadria, estende-se um gracioso jardim, cujas pérgulas de fulvas buganvílias espalham beleza e sombra. Gostei desta Malanje, flausina, sem ar de posses mas bem apessoada. Peneirenta bonita. É de voltar. E percorrer a preceito.

Calandula, pequena vila junto ao rio Lucala, afluente do Kuanza, dá o nome às portentosas quedas de água, outrora chamadas dos “Duques de Bragança”, que justificam as permanentes romarias de turistas nacionais e estrangeiros. Quando se deixa a estrada N’Dalantado-Malanje, e se entra na picada rumo ao destino, nada na paisagem faz antever o deslumbramento das cataratas. A terra, por vezes cultivada, mostra-se pobre, algo ressequida, e poucos são as gentes e os quimbos que se avistam nos longes do planalto. De repente, após umas boas dezenas de lentos quilómetros, um amontoado de carros e um formigar de gentes em redor denunciam a chegada ao local, mas das quedas ainda não há vista, ou não parece haver. Eis senão quando, transposto o anódino miradouro, uma imensa cascata branca “fumegante” se despenha num barranco comprido e estreito onde se deitam dois arco-íris, um mais abaixo nítido e vibrante de cor, o outro mais acima já meio apagado pela fumaça da água que se abate, mas ainda assim a compor o por-mais-que-se-descreva indescritível quadro!!! Das quedas se diz que têm mais de cem metros de altura e não sei quantos de extensão, todavia o espanto deslumbrado que desenham no cenário bravio e selvagem não cabe na descrição da paisagem circundante, que só paisagem é, força da natureza tão ao jeito de África, continente-berço da humanidade como aqui é designado.

A emoção que se solta é do tamanho dos milhões de gotículas que se esfumegam no estrondear espalhafatoso da queda, apenas pressentida por detrás do arvoredo de troncos entrelaçados em caprichosas espirais de folhagens várias, pranchado à beira-rio, como se não fosse nada. Rio que corre, esgueirando-se ladino pelas rochas redondas, lisas, a exigir músculos e cautelas das pernas que as vão atrepando, esgueirando-se até ao cume da ravina. E de novo o deslumbrado espanto em nova perspectiva. De caminho há quem se enfie na água, entalado nas rochas em massagens de correnteza, tipo jacuzzi à moda da terra. Quando o calor aperta o improviso entra em cena.


Luanda, 3 Junho 2009