quarta-feira, 22 de julho de 2009

Mais uma cimeira, e p’ra pior já basta assim…

A presença do chefe de estado angolano na cimeira do G8, a decorrer em Itália, tem sido muito badalada. Há uma toada aparentemente consensual quanto ao relevante significado de o país ser chamado a participar no já aqui designado “areópago dos ricos e poderosos”. De alguma forma compreende-se o nacional entusiasmo, algo deslumbrado, menos claro é que se adivinhem inocentes benefícios e decididos contributos para acabar de vez com a pobreza. Angola fica na chamada África útil, a do petróleo, diamantes e demais utilidades, o que a coloca na rota do investimento internacional mas não lhe garante o investimento humanitário, desde logo porque o crescimento económico registado nem o convoca. O desenvolvimento a que se tem assistido no pós-guerra enuncia uma hipotética melhoria da qualidade de vida dos angolanos, sendo que aqui, como em todo o lado, a hipótese de melhoria não toca a todos. A crueza da estatística dos 2 que comeram 1 sardinha é universal, o caso complica-se quando há três ou quatro bocas para a tal sardinha…

Acrescente-se ainda que no clube dos ricos e poderosos uns “brancos louros de olhos azuis”, esta piada brasileira tem que se lhe diga, congeminaram umas traquinices muito liberais e puseram à solta uma crise mais liberal ainda, tanto que o mundo ficou em pantanas. E porque a pobreza também é dada a liberalidades, infecta a torto e a direito, cavalga no dorso da cobiça de mão dada com a ganância e não é de se deter se não for travada, a melhor forma de lhe meter o freio é pô-la a descoberto, escancarar-lhe os podres, sem cuidar de aparar os respingos. E quem puder que se cuide. Angola não fugiu à regra, apanhou por tabela com a crise, de raspão, mas não foi capaz de ter mão no desaforo da pobreza, e chovem tinidas críticas nos telhados, de vidro, do areópago local.

Vem isto a propósito da enunciada reunião da ordem internacional e de como o mundo anda à mercê da internacional desordem. Desde logo na intoleravelmente injusta repartição da riqueza planetária e da insustentável concentração da redistribuição desigual, de que o continente africano é irrefutável exemplo e de que a África austral não fica atrás. Mais do que as vozes da acusação viciada que se arvora juiz em causa própria, a modos de quem não vê uma tranca no olho mas enxerga um argueiro no olho do vizinho, os números que a pobreza denuncia falam a voz da razão. Não se podem ignorar os marcadores da pobreza, e o agregado índice de desenvolvimeno humano engloba uma série de indicadores que permitem medir os efeitos das já citadas desigualdades. Um recente estudo, iniciativa de uma universidade privada, sobre a realidade angolana, pese embora a insuficiência de ferramentas estatísticas fiáveis, veio firmar o que por cá vai correndo à boca pequena: a muita pobreza num país muito rico. Sendo que a média dos países do sul já é deveras preocupante, o caso angolano obtém resultados ainda mais gravosos em grande parte dos desempenhos avaliados. Em consequência, e em abono da liberdade de imprensa, registe-se, um semanário local fazia título de primeira página: “Angola é campeã mundial da desigualdade social”. Limito-me a citar.

A razão, porém, porque me detive nas anteriores considerações prende-se com o amargo de boca que se me ferrou quando no último fim de semana fui a Sangano, magnífico recanto de praia no magnífico parque nacional da Kissama, cujas belezas não me canso de desvendar. De Sangano retenho a curva arredondada do areal aninhado aos pés da majestosa falésia que se alteia emplumada de penachos de araucárias a ver o mar estendido em rebrilhos de azul, levemente pintalgado de verde água quando o sol rompe o véu acinzentado do cacimbo. Arriba-se à praia pela picada que rasga a arriba de terra vermelha. Logo à chegada descortinam-se poisos de amesendação e repouso, restaurantezinhos de colmos e madeiras e bangalós de construção tradicional arrumados por entre o arvoredo esparso. Em contraste, o aglomerado de escuras cabanas de pau-a-pique entremeadas de estendais de peixe, e os panos coloridos das mulheres que se afadigam na algazarra dos putos que enxameiam de correrias e risos a aldeia dos pescadores. Mais abaixo, na beira da praia os homens e os barcos da faina. Dizem-me que por aqui permanecem desde sempre, o sempre que a guerra tenha permitido, consinto, e a quem a paz terá anunciado promessas de aqui continuar. Não sei. Só sei que desta vez da aldeia encontrei o sítio, restolho de restos e de cinzas. No areal restam poucas cabanas. E há na beira da praia um inusitado movimento, barcos que chegam, peixe que se descarrega e amanha, homens, mulheres, criançada em movimento, o trabalho segue indiferente ao cirandar dos poucos turistas que se afoitam na areia, excepção feita aos espontâneos acenos de cortesia. Este povo é afável por natureza. O sorriso é fácil e a saudação é imediata. Não responde ao cumprimento com um silêncio de cara fechada.

Voltando à aldeia, claro que estranhei a ausência dela, e logo perguntei o porquê do sucedido, cavaqueira a acompanhar o primeiro café da manhã, a resposta evasiva, ninguém a mostrar-se muito interessado no assunto, a mudar de conversa. Mas lá fui sabendo que a aldeia ocupava terrenos entretanto vendidos, e que teve de se mudar lá mais para cima, na entrada da falésia. Se à chegada o facto tinha passado quase despercebido, na saída só havia olhos para a terra povoada de casas de chapa de zinco, paredes e telhados muito brilho inox, a dar ares de espaçosas e a prometer interiores bons para fritar gente quando o calor apertar. Quero crer que se trata de solução temporária. O tempo o dirá.

Luanda, 9 Julho 2009

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A foz do Dande nas terras do Bengo

Viajando pela saída norte de Luanda atravessa-se o município de Cacuaco, zona de instalação preferencial de empresas, qual cintura industrial, e de misérias , qual cloaca habitacional. Até chegar às imediações da lagoa de Panguila, e da povoação, fazem-se uns tantos quilómetros numa espécie de estrada que há-de ser uma “via expresso”, mas que por enquanro, e desde há muito, vai sendo um esgoto de trânsitos mil em permanentes entupimentos, bordejada pelo cenário abarracado encharcado em imundícies, restos de todos os despejos onde os putos brincam e catam despojos, com mar ao fundo! Do mal afamado bairro da Boavista, ao não menos famoso Roque Santeiro, empinam-se nos morros a-ver-o-mar os casebres donde escorrem inomináveis lixeiras, ao dependuro, que as enxurradas da época das chuvas hão-de desabar, e o desespero há-de ser grande e maior há-de ser a capacidade de resistir. Nos entretantos sobram doenças e marginalidades, é zona perigosa, e o imenso musseque vai-se esparramando até onde a vista alcança, e milhares de almas, força de trabalho, se acantonam no desditoso belo território de Cacuaco, à beira mar plantado.

Nesta terra a mãe natureza esbanja mimos , adoça o clima e explode em meneios de beleza, tenho comigo que há-de ser, também há-de ser, para mitigar em afagos as mínguas que dos filhos não consegue tolher, só pode aliviar. Tanta grandeza há-de ser para lhes afagar as mentes e sossegar os corações. Só pode ser.

Cerca de trinta quilómetros e duas horas depois – no regresso uma hora haveria de ser um sucesso, viagem rápida, correu muito bem – passa-se o posto de controlo de fronteira – reminiscência do tempo de guerra, da era colonial? -, cada vez menos controlador e mais de proximidade policial, e entra-se na província do Bengo. O destino desta vez é a Barra do Dande, pequena, aparentemente, povoação pesqueira na foz do rio.

A estrada asfaltada com todos, sinalização, marcações, bermas e protecções, esgueira-se por entre a chana, savana de capim rasteiro a ondular ao vento num amarelo de seara madura, os garbosos embondeiros fazem-se aparecidos mas não se misturam com o mulherio, as palmeiras matebas lhes chamam, estatura meã, farfalhudas e empinocadas, que se vão espalhando em pequenos bandos até se organizarem nos palmares que se estendem à beira-mar. Pelo meio também saem a terreiro os penachos das araucárias, altas e vistosas, menos dadas a ajuntamentos que as moçoilas matebas.

Feita a ponte que atravessa o rio, a estrada segue rumo ao Ambriz, mas o destino era mesmo ali ao pé, a praia que emoldura a foz. O complexo turístico “Paradíseos”, talvez invocação de paradisíacos lugares, dispõe tendas e bangalôs, casitas de madeira cobertas de colmo, rentes ao palmar, e um simpático barzinho palafita repleto de rapazitos fardados a preceito que distribuem bebidas pelas mesas de baixo das palmeiras espalhadas no areal. É tempo de cacimbo, está frio para praias, só os pulas (os brancos) não se dão bem conta disso, porém a praia está quase deserta. Na caminhada à borda d’água, sempre vigiada pelas palmeiras a abanar na brisa, muito juntas e entrelaçadas de árvores outras que se lhes enroscam nas raizes e vão trepando outras folhagens, lavam-se os olhos na quietude da paisagem, são só paradíseos à nossa vista…. E do cimo duma das falésias os olhos vão-se esbugalhar de espanto, tal a grandeza, a imponência, o sem fim da beleza que se nos oferece. Então sentimo-nos grão de areia, coisa nenhuma, no regaço desta portentosa mãe natureza, onde a melodia do silêncio se faz ouvir. E onde um altaneiro embondeiro cruza e descruza os braços a mirar de cima o azul rematado de fitilho branco da baía que recebe o Onzo, o rio que ali se desagua. Duas araucárias amarram-se, vistosas, num pequeno patamar adiante na escarpa, as outras, as demais árvores ou arbustos, erguem-se acima do capim baixote em arranjos harmoniosos, e discretos para não ofuscar a pose do macho embondeiro.

Inversão de marcha para alcançar o poiso destinado para almoço, um agro-turismo algures nas redondezas. Encontrada a picada que vem à estrada, e após uns bons metros sacolejados à maneira, o restaurante-esplanada oferece-se erm jeito de miradouro, e que mirada!!! Uma vastidão , literalmente a perder de vista, pontilhada de arvoredos e esparsos povoados, aqui e ali pintalgada de traços e pontos azuis, em tamanho grande, que é como quem diz o rio a mostrar-se por entre nacos de verde e as lagoas a rebrilharem ao sol na campina africana. Também este, o Dande, se espraia em curvas voluptuosas, inesperadamente quase uterinas, e se solta em lagoas espaçosas onde flutuam umas também inesperadas ilhas, mais ilhotas de verdes e musgos, na aparência. Enquanto o almoço uma, bonitinha e bem redonda, mudou de sítio. Encostou-se à margem da lagoa.


Luanda, 30 Junho 2009