quarta-feira, 22 de julho de 2009

Mais uma cimeira, e p’ra pior já basta assim…

A presença do chefe de estado angolano na cimeira do G8, a decorrer em Itália, tem sido muito badalada. Há uma toada aparentemente consensual quanto ao relevante significado de o país ser chamado a participar no já aqui designado “areópago dos ricos e poderosos”. De alguma forma compreende-se o nacional entusiasmo, algo deslumbrado, menos claro é que se adivinhem inocentes benefícios e decididos contributos para acabar de vez com a pobreza. Angola fica na chamada África útil, a do petróleo, diamantes e demais utilidades, o que a coloca na rota do investimento internacional mas não lhe garante o investimento humanitário, desde logo porque o crescimento económico registado nem o convoca. O desenvolvimento a que se tem assistido no pós-guerra enuncia uma hipotética melhoria da qualidade de vida dos angolanos, sendo que aqui, como em todo o lado, a hipótese de melhoria não toca a todos. A crueza da estatística dos 2 que comeram 1 sardinha é universal, o caso complica-se quando há três ou quatro bocas para a tal sardinha…

Acrescente-se ainda que no clube dos ricos e poderosos uns “brancos louros de olhos azuis”, esta piada brasileira tem que se lhe diga, congeminaram umas traquinices muito liberais e puseram à solta uma crise mais liberal ainda, tanto que o mundo ficou em pantanas. E porque a pobreza também é dada a liberalidades, infecta a torto e a direito, cavalga no dorso da cobiça de mão dada com a ganância e não é de se deter se não for travada, a melhor forma de lhe meter o freio é pô-la a descoberto, escancarar-lhe os podres, sem cuidar de aparar os respingos. E quem puder que se cuide. Angola não fugiu à regra, apanhou por tabela com a crise, de raspão, mas não foi capaz de ter mão no desaforo da pobreza, e chovem tinidas críticas nos telhados, de vidro, do areópago local.

Vem isto a propósito da enunciada reunião da ordem internacional e de como o mundo anda à mercê da internacional desordem. Desde logo na intoleravelmente injusta repartição da riqueza planetária e da insustentável concentração da redistribuição desigual, de que o continente africano é irrefutável exemplo e de que a África austral não fica atrás. Mais do que as vozes da acusação viciada que se arvora juiz em causa própria, a modos de quem não vê uma tranca no olho mas enxerga um argueiro no olho do vizinho, os números que a pobreza denuncia falam a voz da razão. Não se podem ignorar os marcadores da pobreza, e o agregado índice de desenvolvimeno humano engloba uma série de indicadores que permitem medir os efeitos das já citadas desigualdades. Um recente estudo, iniciativa de uma universidade privada, sobre a realidade angolana, pese embora a insuficiência de ferramentas estatísticas fiáveis, veio firmar o que por cá vai correndo à boca pequena: a muita pobreza num país muito rico. Sendo que a média dos países do sul já é deveras preocupante, o caso angolano obtém resultados ainda mais gravosos em grande parte dos desempenhos avaliados. Em consequência, e em abono da liberdade de imprensa, registe-se, um semanário local fazia título de primeira página: “Angola é campeã mundial da desigualdade social”. Limito-me a citar.

A razão, porém, porque me detive nas anteriores considerações prende-se com o amargo de boca que se me ferrou quando no último fim de semana fui a Sangano, magnífico recanto de praia no magnífico parque nacional da Kissama, cujas belezas não me canso de desvendar. De Sangano retenho a curva arredondada do areal aninhado aos pés da majestosa falésia que se alteia emplumada de penachos de araucárias a ver o mar estendido em rebrilhos de azul, levemente pintalgado de verde água quando o sol rompe o véu acinzentado do cacimbo. Arriba-se à praia pela picada que rasga a arriba de terra vermelha. Logo à chegada descortinam-se poisos de amesendação e repouso, restaurantezinhos de colmos e madeiras e bangalós de construção tradicional arrumados por entre o arvoredo esparso. Em contraste, o aglomerado de escuras cabanas de pau-a-pique entremeadas de estendais de peixe, e os panos coloridos das mulheres que se afadigam na algazarra dos putos que enxameiam de correrias e risos a aldeia dos pescadores. Mais abaixo, na beira da praia os homens e os barcos da faina. Dizem-me que por aqui permanecem desde sempre, o sempre que a guerra tenha permitido, consinto, e a quem a paz terá anunciado promessas de aqui continuar. Não sei. Só sei que desta vez da aldeia encontrei o sítio, restolho de restos e de cinzas. No areal restam poucas cabanas. E há na beira da praia um inusitado movimento, barcos que chegam, peixe que se descarrega e amanha, homens, mulheres, criançada em movimento, o trabalho segue indiferente ao cirandar dos poucos turistas que se afoitam na areia, excepção feita aos espontâneos acenos de cortesia. Este povo é afável por natureza. O sorriso é fácil e a saudação é imediata. Não responde ao cumprimento com um silêncio de cara fechada.

Voltando à aldeia, claro que estranhei a ausência dela, e logo perguntei o porquê do sucedido, cavaqueira a acompanhar o primeiro café da manhã, a resposta evasiva, ninguém a mostrar-se muito interessado no assunto, a mudar de conversa. Mas lá fui sabendo que a aldeia ocupava terrenos entretanto vendidos, e que teve de se mudar lá mais para cima, na entrada da falésia. Se à chegada o facto tinha passado quase despercebido, na saída só havia olhos para a terra povoada de casas de chapa de zinco, paredes e telhados muito brilho inox, a dar ares de espaçosas e a prometer interiores bons para fritar gente quando o calor apertar. Quero crer que se trata de solução temporária. O tempo o dirá.

Luanda, 9 Julho 2009

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A foz do Dande nas terras do Bengo

Viajando pela saída norte de Luanda atravessa-se o município de Cacuaco, zona de instalação preferencial de empresas, qual cintura industrial, e de misérias , qual cloaca habitacional. Até chegar às imediações da lagoa de Panguila, e da povoação, fazem-se uns tantos quilómetros numa espécie de estrada que há-de ser uma “via expresso”, mas que por enquanro, e desde há muito, vai sendo um esgoto de trânsitos mil em permanentes entupimentos, bordejada pelo cenário abarracado encharcado em imundícies, restos de todos os despejos onde os putos brincam e catam despojos, com mar ao fundo! Do mal afamado bairro da Boavista, ao não menos famoso Roque Santeiro, empinam-se nos morros a-ver-o-mar os casebres donde escorrem inomináveis lixeiras, ao dependuro, que as enxurradas da época das chuvas hão-de desabar, e o desespero há-de ser grande e maior há-de ser a capacidade de resistir. Nos entretantos sobram doenças e marginalidades, é zona perigosa, e o imenso musseque vai-se esparramando até onde a vista alcança, e milhares de almas, força de trabalho, se acantonam no desditoso belo território de Cacuaco, à beira mar plantado.

Nesta terra a mãe natureza esbanja mimos , adoça o clima e explode em meneios de beleza, tenho comigo que há-de ser, também há-de ser, para mitigar em afagos as mínguas que dos filhos não consegue tolher, só pode aliviar. Tanta grandeza há-de ser para lhes afagar as mentes e sossegar os corações. Só pode ser.

Cerca de trinta quilómetros e duas horas depois – no regresso uma hora haveria de ser um sucesso, viagem rápida, correu muito bem – passa-se o posto de controlo de fronteira – reminiscência do tempo de guerra, da era colonial? -, cada vez menos controlador e mais de proximidade policial, e entra-se na província do Bengo. O destino desta vez é a Barra do Dande, pequena, aparentemente, povoação pesqueira na foz do rio.

A estrada asfaltada com todos, sinalização, marcações, bermas e protecções, esgueira-se por entre a chana, savana de capim rasteiro a ondular ao vento num amarelo de seara madura, os garbosos embondeiros fazem-se aparecidos mas não se misturam com o mulherio, as palmeiras matebas lhes chamam, estatura meã, farfalhudas e empinocadas, que se vão espalhando em pequenos bandos até se organizarem nos palmares que se estendem à beira-mar. Pelo meio também saem a terreiro os penachos das araucárias, altas e vistosas, menos dadas a ajuntamentos que as moçoilas matebas.

Feita a ponte que atravessa o rio, a estrada segue rumo ao Ambriz, mas o destino era mesmo ali ao pé, a praia que emoldura a foz. O complexo turístico “Paradíseos”, talvez invocação de paradisíacos lugares, dispõe tendas e bangalôs, casitas de madeira cobertas de colmo, rentes ao palmar, e um simpático barzinho palafita repleto de rapazitos fardados a preceito que distribuem bebidas pelas mesas de baixo das palmeiras espalhadas no areal. É tempo de cacimbo, está frio para praias, só os pulas (os brancos) não se dão bem conta disso, porém a praia está quase deserta. Na caminhada à borda d’água, sempre vigiada pelas palmeiras a abanar na brisa, muito juntas e entrelaçadas de árvores outras que se lhes enroscam nas raizes e vão trepando outras folhagens, lavam-se os olhos na quietude da paisagem, são só paradíseos à nossa vista…. E do cimo duma das falésias os olhos vão-se esbugalhar de espanto, tal a grandeza, a imponência, o sem fim da beleza que se nos oferece. Então sentimo-nos grão de areia, coisa nenhuma, no regaço desta portentosa mãe natureza, onde a melodia do silêncio se faz ouvir. E onde um altaneiro embondeiro cruza e descruza os braços a mirar de cima o azul rematado de fitilho branco da baía que recebe o Onzo, o rio que ali se desagua. Duas araucárias amarram-se, vistosas, num pequeno patamar adiante na escarpa, as outras, as demais árvores ou arbustos, erguem-se acima do capim baixote em arranjos harmoniosos, e discretos para não ofuscar a pose do macho embondeiro.

Inversão de marcha para alcançar o poiso destinado para almoço, um agro-turismo algures nas redondezas. Encontrada a picada que vem à estrada, e após uns bons metros sacolejados à maneira, o restaurante-esplanada oferece-se erm jeito de miradouro, e que mirada!!! Uma vastidão , literalmente a perder de vista, pontilhada de arvoredos e esparsos povoados, aqui e ali pintalgada de traços e pontos azuis, em tamanho grande, que é como quem diz o rio a mostrar-se por entre nacos de verde e as lagoas a rebrilharem ao sol na campina africana. Também este, o Dande, se espraia em curvas voluptuosas, inesperadamente quase uterinas, e se solta em lagoas espaçosas onde flutuam umas também inesperadas ilhas, mais ilhotas de verdes e musgos, na aparência. Enquanto o almoço uma, bonitinha e bem redonda, mudou de sítio. Encostou-se à margem da lagoa.


Luanda, 30 Junho 2009

segunda-feira, 29 de junho de 2009

O insustentável peso da pobreza

Há dias em conversa com um responsável de um gabinete da “ajuda internacional” sediada em Angola, e dado o contexto profissional da ocorrência, pasmei ao ouvir dizer que os doadores tradicionais estão progressivamente a abandonar o país, agora não mais em situação de emergência, a carecer da ajuda humanitária de que beneficiou em tempos de guerra. E o argumento será o de que já não é necessário, o país é rico e tem muitos recursos, e a pobreza já não mora aqui. E, ouvi ainda, não falta quem, vivendo em Luanda, confirme esta desnecessidade, argumentando que poderá haver algumas bolsas de pobreza, talvez nas periferias, nada porém que justifique a por alguns alardeada miséria generalizada. Essa, ou dessa, já não há. Estamos a falar de estrangeiros residentes, quiçá representantes de organismos ditos humanitários, empenhados no processo de desenvolvimento em curso, o negócio da reconstrução, digo eu, processo esse que, pelos vistos, não põe as pessoas em primeiro lugar (??!!!) como no tal período da emergência. Não consegui calar o pasmo, apesar do melindre da situação, , e perguntei se esse “já não há” é eufemismo de discurso oficial para afinarem todos pelo mesmo diapasão, os de fora e os de dentro, porque o que há até um cego vê, a não ser que seja um que não quer ver. E a resposta veio pronta, não, dependendo do como-e- onde-se-vive e do com-quem-se-convive, as pessoas não se apercebem da pobreza que anda à solta!!? Estamos conversados.

Da janela do ar condicionado, trancado, basta entrar na ilha de Luanda, a mítica e efabulada ilha de todos os contrastes para nos bater de frente a emergência do insustentável peso da pobreza. A ilha deprime-me. A ilha assusta-me. A ilha inibe-me, Não deito a cabeça de fora nem ponho o pé no chão. A eito não, só nos sítios onde-como-e-com-quem. E se há sítios a não ficar nada atrás de qualquer riviera que se preze é na ilha. E se há requinte, qualidade, bom gosto e diversão, e uma carteira recheada também se recomenda, é na ilha. Já por lá andei e gostei. Não muito, porque não sou muito in, porque não ando a esfarrapar dinheiro a rodos, e porque não gosto, já o disse, de andar cá fora.Gosto mas é depois de estar lá dentro, nos sítios. Onde a noite se aconchega no sussurrar das palmeiras a debruar os tablados donde se escoa a música-ambiente que adoça os brilhos do mar ali ao pé, e a brisa sopra os penachos dos coqueteiles das petisqueiras. Com estacionamento vigiado, sem o indizível bafo de todos os detritos, nem a comichão da lama e da poeira nem a impertinência da pedinchice que nos encabula e entala, e por ser tanta intimida, e pode atacar, que a pobreza não é apenas sina de desgraçadinhos, é também forja de vícios, e o de roubar e matar não é só fumaça de loucos. É a desavergonhada miséria, galdéria destravada a desbundar maus costumes. Insensível à beleza da ilha, a espatifar a floresta que só estorva e a conspurcar as areias que não seguram os casebres em noites de calema, a rondar manhosa as casas dos ricos e a farejar o golpe nos sítios onde eles se poisam.
Nas raizes dos “ilheus” há kiandas que se banham no mar em noites de luar, há bairros que se afundam no areal sobrante da desmatação urbana, há velhos encarquilhados na desmesura do nada-é-como-era e meninos largados no vozeirão do agora-cada-um-que-se-amanhe. E numa noite de calemas foram engolidas duzentas habitações, calamidade natural, e o bairro teve de ser evacuado e o povo foi para um abrigo temporário anunciado, campo de tendas a milhas dali, até que se lhes reconstrua outra vida, noutro sítio. E depois veio uma noite de negligência de vela mal ardida e sessenta residências arderam e o povo teve de ser evacuado e foi para um abrigo temporário anunciado, et ceatera, até que….

A ilha vai mudar, o anúncio é oficial, a ilha vai ser o sítio mais bonito de Luanda, moderno, arrojado, poiso de todas as vanguardas, e “as mamãs da ilha nada têm que recear”, master dixit. Hão-de voltar e tudo vai ser como dantes. A cada um o seu sítio. Pois então.


Luanda, 15 junho 2009

Por Calandula a Malanje ...

O fim de semana prolongado convidava ao passeio fora de portas, porém, a alegada sobrelotação de hoteis e quejandos, nos destinos mais cobiçados, forçou a saída antes do raiar do sol, num ir e vir de assentada a terras de Malanje.

Em tempo de cacimbo os dias são bem mais curtos, daí a partida de Luanda pelas cinco da manhã, noite ainda, rumo às quedas de água de Calandula, na província de Malanje, sendo que o regresso já então se adivinhava noite fora, pois que pouco depois das seis da tarde anoitece e viajar de noite é acto aventureiro. As estradas não são iluminadas, claro, nem a iluminação pública, que a não há, se incendeia a torto e a direito pelas larguezas deste país imenso e despovoado, onde aldeias de palhotas ou de blocos de argila, amarela e vermellha, a dar à paisagem uns esbatidos de côr por debaixo das cabeleiras escuras dos colmos dos telhados, se aninham no mato, o capim ainda alto na chana e a floresta a reverdejar intumescida das chuvas que se foram faz pouco. Do onde-a-onde das sanzalas ao faz-de- conta de vilas e cidades, a maior parte estropiadas, mutiladas de guerra embrulhadas no manto andrajoso do musseque de pobrezas sem fim, acender públicos luzeiros para alumiar forasteiros em trânsito não é necessariamente a primeira necessidade. A energia eléctrica, a desejada, quando aqui chegar há-de encontrar melhor poiso em hospitais, centros comunais, escolas e demais, antes de desaguar em néons achinesados a semear honguekongues de imitação que têm tudo a ver com o que não combina com estas terras nem com a sua tradição. Passe o preconceito cultural que a segundo plano vota o conforto das lâmpadas, salvaguardado o direito ao bem-estar das gentes que aqui vivem, não há luzeiro mais belo que uma noite de luar, no mato. Sobretudo para quem está de passagem, viajando…

Viajando, e do perigo anunciado de o fazer de noite se precaver, pois as possibilidades são infinitas: ele são os carros, ligeiros ou pesados, mesmo os pesadíssimos, que circulam sem nenhuma ou muito fraca luz, e quando não em contra-mão; ele são as avarias sinalizadas com montinhos de predras e ramos, e quem os vê?!!; ele são os inesperados e lunares buracos que podem aparecer, e quando menos se espera; ele são os peões solitários que deambulam estrada fora, fora das bermas, quantas vezes fora de toda e qualquer ajuizada prudência. Para não falar no risco permanente de se apanhar com a insana condução, assassina, em excesso de velocidade e estado de embriaguez, tudo a subir à medida que a noite sobe. Depois, ou antes de mais, ao aproximar das povoações , há carreiros de gente, homens no regresso do trabalho, mulheres saídas das lavras, cachos de putos a serigaitar, tudo caminhando na beira da estrada. E umas trouxas de cabras enroladas a dormir também lá podem estar, na estrada, sem luz. E desta viagem me ficou a imagem de N’Dalatando, cidade que antes da guerra era jardim, hoje capital de província, ainda sob o efeito pós-traumático, macilenta e mal trajada, muito cheia de avenidas alcatroadas e desguarnecidas, à espera de melhores dias, que na noite se adivinha luzindo como uma procissão de velas, umas dezenas. E gente, muita gente a encarreirar estrada adiante.Quando crescer esta cidade vai ser grande. Hei-de voltar para ver. E vai valer a pena.
Como valeu a pena dar um salto a Malanje, cidade ainda modesta, porém formosa e aperaltada. A chegada faz-se por entre um renque de árvores, talvez acácias aparentadas, meote branco, qual estrada-alameda, e não se avista o musseque, apenas uns bairros de casitas alinhadas, pintadas de fresco algumas, desenxovalhadas todas. Estranhamente, e com deliciada surpresa, o lençol esfarrapado e pardacento, pejado de lixo, viveiro de “macrobianas” misérias, não se faz aparecido aos olhos do visitante. Na praça central, belos edifícios da era colonial em esquadria, estende-se um gracioso jardim, cujas pérgulas de fulvas buganvílias espalham beleza e sombra. Gostei desta Malanje, flausina, sem ar de posses mas bem apessoada. Peneirenta bonita. É de voltar. E percorrer a preceito.

Calandula, pequena vila junto ao rio Lucala, afluente do Kuanza, dá o nome às portentosas quedas de água, outrora chamadas dos “Duques de Bragança”, que justificam as permanentes romarias de turistas nacionais e estrangeiros. Quando se deixa a estrada N’Dalantado-Malanje, e se entra na picada rumo ao destino, nada na paisagem faz antever o deslumbramento das cataratas. A terra, por vezes cultivada, mostra-se pobre, algo ressequida, e poucos são as gentes e os quimbos que se avistam nos longes do planalto. De repente, após umas boas dezenas de lentos quilómetros, um amontoado de carros e um formigar de gentes em redor denunciam a chegada ao local, mas das quedas ainda não há vista, ou não parece haver. Eis senão quando, transposto o anódino miradouro, uma imensa cascata branca “fumegante” se despenha num barranco comprido e estreito onde se deitam dois arco-íris, um mais abaixo nítido e vibrante de cor, o outro mais acima já meio apagado pela fumaça da água que se abate, mas ainda assim a compor o por-mais-que-se-descreva indescritível quadro!!! Das quedas se diz que têm mais de cem metros de altura e não sei quantos de extensão, todavia o espanto deslumbrado que desenham no cenário bravio e selvagem não cabe na descrição da paisagem circundante, que só paisagem é, força da natureza tão ao jeito de África, continente-berço da humanidade como aqui é designado.

A emoção que se solta é do tamanho dos milhões de gotículas que se esfumegam no estrondear espalhafatoso da queda, apenas pressentida por detrás do arvoredo de troncos entrelaçados em caprichosas espirais de folhagens várias, pranchado à beira-rio, como se não fosse nada. Rio que corre, esgueirando-se ladino pelas rochas redondas, lisas, a exigir músculos e cautelas das pernas que as vão atrepando, esgueirando-se até ao cume da ravina. E de novo o deslumbrado espanto em nova perspectiva. De caminho há quem se enfie na água, entalado nas rochas em massagens de correnteza, tipo jacuzzi à moda da terra. Quando o calor aperta o improviso entra em cena.


Luanda, 3 Junho 2009

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Voltando a Sangano....

Voltei a Sangano, depois das calemas que, em princípio, se foram até novo equinóceo que as solte. A praia está diferente, pareceu-me maior. A maré, manhãzinha, estava vaza mas mesmo assim o mar, um nadinha espevitado p’ro costume, dançaricava mais abaixo, como quem desceu a bainha da saia ao areal ali espojado. E pela primeira vez consegui atravessar o pregueado miúdo de rochas que costumavam impedir a passagem para a baía mais ao lado, de que até então apenas avistara o redondo azul a bordejar a falésia recortada.

Logo ali a novidade da lagoa, enorme, também ela muito azul a desenhar-se na areia dourada e a enfiar-se entre as arribas. Praia ampla, quase virgem,, de um lado o mar, do outro as arribas, e lá bem encostadinha a lagoa, escondida da marca das pegadas, poucas, que se avistam junto à borda d’água. O fundo é de argila, cinzenta, viçosa vegetação ao redor, é uma espécie de maternidade de peixes que rabioscam fugidios à aproximação de estranhos, no caso gente a enterrarmos os pés no fofo escorregadio da lama.

E logo adiante a surpresa dos pés das falésias enfiados em meias cinzentas com búzios pequenitos esbranquiçados pregados ou espetados. O tempo e a acumulação de sedimento se encarregará de fossilizar o coturno. Para já , parece que estamos a ver um enorme pavilhão a céu aberto onde instalações de artista caprichoso se exibem. Artista que a sabemos ela, mãe-natureza, imprevisível e caprichosa como convém.

Para completar a mostra e pasmar os visitantes aqui e além, pousados na areia, uns pudins, alguns meio escangalhados no desenformar, decorados com umas rosetas de caramelo mais apertado, castanho muito escuro. Digamos que os “pudins”, rochas magmáticas que afloram e o sol esquadraça à supeficie, vão puxando o caramelo à medida que esfriam, formando-se cristais arrebicados, tipo pétalas, que lhes dão aquele aspecto de corolas de rosas empinocadas. E mais se hão-de empinocar e aglomerar por força do tempo, e dar lugar aos maciços das arribas que se alteiam a ver o mar. Falésias altaneiras, encarapinhadas de verde nos cocurutos, de onde a onde carrapitos de araucárias, aos avanços e recuos sobre a praia, ora acinzentadas e reboludas, ora tingidas de amarelos ocres dégradés, laminadas, a lembrar gigantes pasteis folhados .

Como não sabia como me explicar, tão encantada fiquei com o que vi, deu-me para a pastelaria alegórica. É um recurso como outro qualquer. À falta de melhor imagem….


Luanda, 27 Abril 2009

quinta-feira, 23 de abril de 2009

É tempo de calemas....

Viajando de novo pela estrada Luanda-Benguela, que desliza junto à costa, pela primeira vez vi o mar riscado de branco, às tirinhas, e sem aquele aspecto de imenso lençol azul turquesa com pinceladas de verde esmeralda, todo tufadinho, estiraçado até à linha do horizonte. Pelo contrário, mostrava-se de ar enfunado, a deixar adivinhar pouca convivialidade para passeatas descuidadas à beira-mar, banhos e mergulhos. Sua excelência estava de calemas…

Calemas, ondas grandes, as marés-vivas da costa africana, que ocorrem por altura do equinócio, chegaram mais tarde do que o costume, diz quem conhece, e vieram emprestar ao abril-águas-mil efeitos secundários terrivelmente belos e inclementes. Da ilha de Luanda chegou notícia de uma trintena de habitações arrasadas da noite para o dia, sina de musseque, definitivamente, e dos atrevidos avanços praias adentro que arredaram, provisoriamente, os veraneantes de fim de semana. Nas praias da costa, rumo ao sul, o efeito calema já deixou marcas, afectou acesso aos resorts de Sangano, logo em reposição, depenicou o areal, e escabujou-se à roda das cubatas da aldeia dos pescadores dali, mais avisados e prevenidos, afortunadamente. Espero voltar lá, brevemente, e ver com está.

A surpresa aguardava-nos na foz do Kuanza que, segundo entendidos, até final do mês, ou pouco mais, vai mudar completamente de figura. Com efeito, a bela língua de areia que se espraiava entre o oceano e o rio, delicada e fofa como um palito la reine, apresentava-se um tanto desdentada, com entradas por onde galgavam as ondas até lamberem o rio, agora azul marinho em correntezas de meter respeito. Como quem sabe o que aí vem e já se vai preparando. A fazer fé nas previsões, que os movimentos da geo-dinâmica autóctone, surpreendentemente espantosos, não enganam ninguém, a restinga vai desaparecer a brevíssimo trecho, na margem direita vai nascer uma praia, e o rio vai entrar a direito no mar, sem se demorar naquele comprido lagozinho remançoso, mas com forte personalidade, onde nos acocorávamso em amenas cavaqueiras, quais hipopótamos de pequeno porte e grande deleite. A caminhada restinga fora, ora na frescura espumosa do mar, ora no chapinhar cóceguento do rio, desaguava sempre em banhos de caldeira morna, lentos, demorados, relaxantes. Acabou; ou vai acabar. Outro programa de festas há-de vir, que o sítio é de eleição e vai continuar a ser paradeiro de repouso e fruição.

Nas margens os mangais arregaçam mais ainda os esguios troncos, quase tranças, as águias pesqueiras planam altaneiras a mirar a pescaria, e os pescadores amadores, e amantes de pesca grossa, fazem contas ao peixe que está para vir já que, de momento, o que por aqui estagiava se foi em demanda de águas mais serenas, longe das calemas. Plantas, bichos e homens em concertada espera, quando o tino dos homens prevalece, que dos outros não há que temer, a mãe natureza os educou no respeito das tradições e na justeza dos costumes .

Ela, a mais-velha, se respalda em seus jeitos de realeza e, se cultuada a preceito, é magnânima em seus mimos, quanto desmesurada em seus amuos. Da sua raiva, em espasmos de sentida revolta, sabem sobretudo os homens que continuamente a provocam com arrebites de assomos de civilização, cada vez maiores os avanços e as perdas. Avançam, sem olhar a meios, os detentores do chamado progresso civilizacional. Perdem os demais, plantas, bichos e homens. E sobretudo os homens. Os que não navegam na crista da onda do progresso. Os das civilizações ditas atrasadas. Os das sociedades ditas subdesenvolvidas; ou das regiões (países) ditas em desenvolvimento; ou das economias ditas emergentes. Depende do que têm ou do que podem vir a render. E quando rendem, rendem para quem pode, para quem já tem e não para quem precisa, porque é preciso ter para poder cavalgar a onda. Resistir à calema.

As calemas que a tempos se eriçam na costa africana, em espendores de espuma e caprichos de ventania, revolteando areias, (re)talhando margens, expressivos bailados de Kiandas, as deusas dos mares, são aguardadas e celebradas como lhes é devido. Apenas os indígenas vulneráveis as temem, porque as respeitam e guardam reverência à mais-velha, mãe natureza. E a velha sente que os seus ensinamentos se desconjuntam, a terra se desmorona. E estrebucha e braveja. Dá sinal. O planeta, ele, o mais-velho, representa o poder, ela a força, mas ele não pode nada. Está seriamente ameaçado. Todavia, e ainda, ao abrigo das calemas da civilização? Nada o garante. Muito pelo contrário.

Luanda, 22 abril 2009

quarta-feira, 22 de abril de 2009

De Benguela para a Gabela...

O fim de semana prolongado da Páscoa, precedido de um compromisso profissional em Benguela, foi aproveitado para nova incursão naquelas paragens e, no regresso, uma visita à Gabela, a terra dos cafezais que, segundo informação espúria, estariam em período de floração.


As flores já se tinham transformado em pequenos bagos verdes, não imediatamente visíveis aos olhos de quem não conhece o arbusto cafezeiro, de modo que após minuciosa busca lá se percebeu que estávamos em presença de vastas plantações de café, de um e de outro lado da estrada. O mar verde de onde se erguiam imbondeiros, bananeiras, e um nunca mais acabar de troncos, ramos e folhas numa algazarra de passarada, flores garridas e frutos “desconhecidos” – a diversidade não aproveita à ignorância de visitantes bio-analfabetos - era afinal o demandado cafezal. A estrada da Gabela é um espécie de pesponto ziguezagueante na vastidão da paisagem verdejante, espampanante no exagero de tons e viços, espelhada no azul prateado do rio que se esgueira por palmares e lagoas, e onde aqui e ali se arredondam aldeias de cubatas e de adobes. Estas, como as da vila, de casas vermelhas da cor da terra, colmadas ou com telhado de zinco, encarrapitadas nos morros em cascata, assim a lembrar o presépio, humildes na singeleza dos cómodos e dos haveres. Maravilha para quem vê, é um espanto, dureza para quem lá vive, dá que pensar, mas que não se adivinha no vaivém colorido das gentes e na garridice da catraiada. Dir-se-ia que de tão pouco ter esta gente com pouco se contenta, e se entrega em perfeita harmonia ao brilho da luz , apesar do sol inclemente, que se derrama nas cores cálidas da mãe natureza, ela que a todos se impõe e tudo domina. Enfim, a visão romântica do passante, bem acantonado no ar condicionado, que no devaneio da miragem se escusa a pensar nas endemias e apêndice de enfermidades e escassezes que determinam vidas desprotegidas e mortes prematuras. Beleza e ironia….


A meio caminho, paragem nas cachoeiras do Sumbe, imponente espectáculo natural de luz e som, grossas cortinas cantantes de água a esfumear brancura no verde do entorno recortado no céu azul pintalgado de farrapos de nuvens, e o rio segue lesto a reverberar dourados na manhã soalheira. Ali perto uma aldeia, e o formigueiro do mercado de rua , cabanas e casas de pau-a-pique, outras mais de alvenaria, porém esconsas, perene o abandono das gentes que se afadigam no frenesim de acrescentar às vidas minguadas o pão-nosso-de-cada-dia.


Benguela, a cidade das acácias rubras, continua esbelta e mal trajada. Belas vivendas do período colonial, à vista bem restauradas, bordejam amplas avenidas, boas enfiaduras, junto à zona ribeirinha, onde um passeio marítimo a pedir restauro, salvo no pedaço ocupado por restaurantes e esplanadas, tal como os edifícios, os passeios e os jardins de boa parte da cidade reclamam intervenção urgente. E então Benguela será a bela.


Uma volta pela costa, nos arredores da cidade, levam-nos à linda praia da Baía Azul, enfeitada de árvorezitas de rendilhada folhagem, extenso areal perlado de conchas e pequenos búzios onde um mar canelado, esticadinho, azul e verde desenha bicos de espuma branca. Tudo é luz, cor e serenidade apenas agitada pelo pipiar dos pássaros em revoada. Adiante, picada fora na vastidão do festival de verdes da paisagem, assoma-se à aldeia, paupérrima, e porto de pesca da Caota, com destino à Caotinha, pequeno promontório debruçado sobre uma extensão de mar de crépon azul e esmeraldado a perder de vista. E a vista perde-se em deleites de lavar-olhos-e-enxaguar-alma. Num repente, enxameiam os meninos da aldeia dos pescadores, olhinhos fosforescentes na lengalenga da pedinchice suscitada pela presença de estranhos, estrangeiros, entretém de graúdos e pequenada num lugar onde não acontece nada. Na desvairada beleza da natureza selvagem e dominadora. Só a pobreza das gentes mora aqui.

Luanda, 16 Abril 2009