quarta-feira, 25 de março de 2009

Crónicas do deserto

Crónicas do deserto: 4º dia – Um sabor a pouco e um querer mais.



A última alvorada vestiu-se olheirenta, mas feliz como um cuco, resmoneando as inusitadas falhas de água da albergaria, mal explicadas e menos aceitáveis, e nem a risota nem as piadas de ocasião conseguiam espantar a certeza de que a “expedição” estava a caminhar para o fim. Este era o último dia. O primeiro da convicção de que a próxima já estará alinhavada. O chefe-da-caravana, o insubstituível luso-angolano nascido no Namibe, cuja paixão pela terra a todos contagia, não fez orelhas moucas às sucessivas provocações do “a-seguir-onde-vamos?”, e mentalmente foi riscando um novo, o próximo, percurso. Adiante, que a caravana está em movimento.

No centro da cidade o carnaval do Lubango soltava-se ao som de ritmados corpos e batuques, num registo de máscaras e fantasias autóctones, deliciosamente primitivas e genuínas. Eflúvios de cor e som que se entranharam nos corpos ainda amolecidos que se iriam fazer à estrada, se Benguela se alcançaria já pela noite, Luanda lá para mais de mil quilómetros e vinte horas depois.

Repete-se o troço de cerca de 90 km de asfalto que se estende à saída do Lubango e mergulha-se em pleno mato, no país profundo de picadas, kimbos de cubatas e palhotas, gente que se queda e move como só em África: é uma outra insustentável leveza do ser! Que insidiosamente nos corrompe e seduz. Fica-se apegado..

O perfil cinza-azulado das montanhas que ora se mostram ora se agacham na imensidão da savana, farta cabeleira verde capim solto à brisa, árvores que se agigantam a esparramar folhagem, e donde a onde só os cocurutos das cubatas se adivinham, e a picada segue rasgando a terra vermelha, revoadas de pó nas curvas e contracurvas, o colorido dos panos e dos frutos na quase solitária venda improvisada à sombra do caminho.

Por aqui é território das mulembas, árvore real angolana dos mitos e das tradições, senhoras de grande porte e impressionante figura. Num país de expressiva cultura falocrática, cuja expressão mais prosiaca é a preocupante violência doméstica que afecta sobretudo as mulheres, não é de todo garantido que a matriarca não faça impôr a sua força e vontade. Porque são de força e vontade as mulheres desta terra: labutam, acartam, amanham a terra, o comer, os filhos e o sustento da família. E em nome dos costumes levam pancada. E continuam de pé, quais mulembas. Mulembas, essas grandes árvores redondas, uterinas, soltando as longas tranças de folhagem em jeito de quem dá colo, e a gente sente que a terra é delas e delas emana o poder da natureza. Talvez por isso o majestático embondeiro, senhor de grande garbo e beleza, se não afoite por estas bandas, num recatado pacto de respeito territorial. Há-de chegar-se mais acima, lá onde o planalto se começa a esgueirar para o mar, e há-de chegar de mansinho, ora mirando ora se quase encostando à mulemba, juntos soberbos, antropomórficas figuras povoando e rendilhando as lonjuras de céu e terra , anunciando ela as despedidas, mostra-se arisca, arredia, e ele vai continuando quase só, cada vez mais só, hierático, garbosamente erguendo a cabeça de trunfa estendida, até que se acomoda em seus senhoriais domínios. E nos há-se guiar até Luanda, sem sobressaltos.

É já madrugada alegre quando o grupo se despede nas imediações da ponte sobre o Kuanza.
Dos vinte e oito aventureiros que se haviam juntado para descer ao deserto do Namibe sobram vinte e cinco promessas de se voltarem a juntar para a próxima expedição. Pelo caminho ficaram carros e tripulantes , destes os três e respectiva viatura que avariou logo no primeiro dia, mas foi e veio um bom quarteirão de entusiasmo, tenacidade, resistência e muita, muita mesmo, alegria solidária.

Cumpriu-se a “profecia”: ficou um sabor a pouco e um querer mais.

Luanda, 24 Fev. 2009

Crónicas do deserto

Crónicas do deserto: 3º dia – O rio das sete e meia.



O sol vai chegando envergonhado, sorrateiro, a luz coada entre as nuvens vai sorvendo o céu estrelado, o acampamento abre os olhos e espreguiça-se. Em breve vai abalar, emaladas as tendas, e a caravana vai rodar ainda deserto adentro, para sul, antes de iniciar a volta de regresso.

Há no ar transparente que se respira como que um formigueiro de ansiedade, um querer tudo ver, sentir, nada perder, que contrasta com a serenidade que nos incha o peito, olhos e alma lavados, pequenos grãos de areia rolando na imensidão do deserto, “em bebedeiras de azul”, diria o poeta, por certo bêbedos de êxtase e emoção. Sabíamo-nos a começar o fim do devaneio e a sofreguidão ia soltando esporas.

Sulcam-se os trilhos de tremedeira constante em espasmos de poeira, ali as gazelas que de longe nos miram em poses estudadas e logo esvoaçam a galope, aqui a surpresa do desfile da paisagem, qual passarela onde se sucedem estilos e modelos. São as rochas em arrojados equilíbrios, a penedia matizada de tons e formas onde tufos de verde se encarrapitam, as dunas que não se alcançam nem as areias, agora pedras e pedregulhos, e logo dum lado a encosta perlada de pompons verdes a fazer inveja às pintas sardentas da que do outro lado se perfila. Mudam-se as cores, mudam-se as plantas, muda-se o chão que se pisa e a vista em redor, só as espinheiras, arbustos que parecem espanadores enterrados de cabo para o ar, vão saltitando ao longo do percurso, pequenas e grandes, sempre a deixar escorrer uma rodelinha de sombra, abrigo de gente e de bichos.

O embasbacamento havia de nos pegar sem aviso quando nos deparámos com o rio caudaloso que corria lesto e cantante a rasar o sopé de imponente falésia, vale adiante, na margem uns repolhudos tufos verde-alface, na outra banda flutuava o esqueleto de uma qualquer viatura que não se percebia como ali tinha vindo parar. Este era o rio que tinha chegado às 7h30 da manhã, tal qual!!, rio de aguada, fruto das chuvas caídas algures a montante. Se mais não chovesse daí a dois dias já não haveria rio. No leito seco atravessa a “estrada” por onde se escoam mercadoria e gado que, como se viu, podem ser apanhados na correnteza, daí a carcaça flutuante. Disto nos foi dando conta um camionista de ocasião, nativo, posto em sossego até que o rio se fizesse de novo estrada. Para ele tão natural como a natureza. E nós varados! E os geólogos, de gosto ou de formação, que andavam de catarpácio em riste a conferir mapas e traçados a exultar satisfação. É o deserto que não pára de nos surpreender. E tudo quanto se possa dizer ou escrever fica aquém. Este deserto é homem de paixão vivida, corpo a corpo, olhos nos olhos, um outro modo de revisitar o “império dos sentidos”. Vive-se, frui-se, recorda-se para sempre.

A jornada estava longe de chegar ao fim, rumar à lagoa do Arco era o destino não sem antes uma abordagem ao oásis atravessando um riacho, filhote do rio das sete e meia, água a cobrir os rodados e nem todos os carros a meter-se nelas não fosse o diabo tecê-las, que isto de jipes também é consante as posses. Porém da tremedeira, solavancos e sacolejos haveria de ficar registo, uns tantos furos a retardar viagem e a esfalfar os incansáveis tripulantes do carro de apoio. Onde todos ajudam nada custa mas…..

À lagoa de crépon azul-turquesa, onde alcatifas de nenúfares se estendiam, arriba-se por entre vegetação frondosa emoldurada por aglomerados rochosos de cor dourada e muitos arrebiques, que se abrem em arcos torneados a espreitar de cima o lago. Da aridez e imponência do deserto temos lembrança, a inclemência do sol não é fingimento, há um estremecer de brisa na folhagem e um rebuliço de gentes, visitantes e habitantes, poucos, a família do curador, meninos alinhados como ervilhas de greiro, todos tão seguidos e tão pequeninos, que a mãe de pronto arruma para a fotografia. E são sorrisos e adeuses e a alegria de receber, e a nossa de sermos recebidos.
De volta aos trilhos, que as picadas do deserto são cheias de personalidade, a caravana toma de novo o rumo da cidade do Namibe, onde se aportará pelas cinco da tarde em ânsias de petisqueira e bebidas frescas. Faz-se poiso na esplanada de um restaurantezinho em frente ao mar, que nos haverá de brindar com um corropio de carnudos caranguejos da terra, ou seja, do mar dali, que apajearam um inesquecivelmente sápido arroz de lagosta com feijão, nunca antes visto, porém supimpa. Foi fartar vilanagem!

Até que a noite se abeirou, a caravana se pôs de novo em marcha, aconchegados os corpos e regalados os espíritos, rumo ao Lubango, curvas da Leba no entretanto. E neste entretanto haveria de acontecer a última baixa: mais um carro que se ia abaixo, forçado a tratos de polé por barrancos, picadas, trilhos e solavancos, muitos. Continuam inabalavelmente em pista os vinte e cinco “expedicionários” que resistiram aos abalos do primeiro dia. Abatem-se os carros, encolhem-se as bagagens e reacomodam-se as gentes.

Tudo se resolve, menos a espera na beira da estrada, horas a fio, por um reboque cujo rebocador motorista se deve ter perdido algures nas tasquinhas das curvas da serra. Ou lá o que foi. Do grupo avançaram alguns para o hotel, na esperança, vã, do banho retemperador, que de nada valia ficarem todos na berma da estrada a ver esperar. E o dia seguinte já estava a começar.

Namibe, 23 Fev 2009

Crónicas do deserto

Crónicas do deserto… - 2º dia: Fados e cantigas à volta da fogueira.


Já a alvorada se derretia nos luzeiros da manhã quando a caravana se recompôs dos desencontrados imprevistos da véspera. Era a serra da Leba a desafiar tudo e todos num cenário de cortar a respiração, tal a imponência, tal a majestade, tal a beleza, tal a justeza dos tamanhos e proporções. É a mãe natureza que nos confronta com a nossa pequenez. Sem apelo nem agravo.

Magnânima, a serra se nos desnuda em requebros e curvas voluptuosas , na cabeça a falésia emoldurada em geometrias de tons ocres e pastel , o torso reclinado em tufos encaracolados de verdes em matizes, aconchegado entre os picos violáceos que de largo se recortam na linha que separa o céu, se derramando em sustenidos de barrancos e ravinas até se aninhar no regaço do Namibe, terra dos mucubais, homens e mulheres trajando panos e adereços, os troncos nus, olhos cintilantes nos rostos de exótica beleza, posam para as fotos, dá-se-lhes dinheiro, mas são eles quem de verdade compra; compram o nosso civilizado espanto. Adiante temos encontro marcado com o Deserto, o senhor que a Leba recebe e acalenta. Numa recatada intimidade que os nossos assarapantados olhos apenas adivinham.

A estrada, qual fita de nastro a bordar ziguezagues na paisagem, esgueira-se formosa e segura até à cidade, a do Namibe, moçoila fresca e de cara lavada debruçada sobre a baía, e também os navios no porto, onde os barcos e pescadores, onde as areias brancas e cabriolas de meninos, onde o passeio marinho se afeita ao mar que mais parece um manto de crépon azul estiraçado. Aqui haveremos de voltar com maior ripanço.

Às portas do deserto, por alturas do plateau que se enfileira ao longe, a pista vai rasgando as cercanias, e tira-se tempo para o “garimpo” de ágatas e jaspes, que os mais entendidos catrapiscam para surpresa e gáudio dos demais.
Enquanto isso, a caravana vai rolando, a paisagem vai-se desfraldando em austeridades de viços e plantas, e há cubatas e palhotas que se avizinham e gente que se adivinha, e os redondos sensuais das dunas que se deitam p’ras bandas do mar, e os esculpidos nos rochedos, variados na forma, no tamanho e na cor. Sempre pasmosos! E lá está o território da famosa e mal encarada welwitschia, espécie de fóssil vivo, planta apenas existente no deserto do Namibe. Das welwitschias diz-se, e não será o caso, que são carnívoras, “comem” insectos, mas aquelas aparentes bocarras escancaradas em beiços negros que nem borracha de pneus mais parecem capazes de comer uns bons bifes. Fica a piada, espicaço de imaginação.

A aguardada surpresa do oásis vem-nos ao caminho, e mesmo assim o pasmo, que os caprichos da natureza póem de rasto os humanos arrebites, é o rio e a lagoa que refrescam a frondosa vegetação onde se abrigam as machambas dos mucubais ali acantonados em palhotas bem organizadas no terreno. Sem eufemismos ou figuras de estilo , em bom rigor e à letra, é o viver-no-meio-do-nada! Os mucubais aqui vivem e pastoreiam o seu gado, agarrados à sua terra e às suas tradições. E à nossa perplexidade dizem nada.

Pelas 6h da tarde o acampamento está montado na largueza do chão só antes pisado pelas pachorrentas vacas, quiçá outros bichos, que se nos acercam impávidas e serenas, e por ali se hão-de acomodar, que nem encenação de presépio, até à manhã do dia seguinte. Por enquanto carros e tendas se arredondam à volta da fogueira que se há-de acender. Saem uns a apanhar lenha, outros se quedam só embasbacados, a mirar os longes e os ruídos do silêncio que se impôem O sol vai-se afastando em pinceladas de cor e pasmo. O ar cálido e transparente vai roçagando as almas e os corpos. Em breve um fogo se incendeia entre um rodado de pedras.
São as febras no braseiro, é o tacho do macarrão que se intromete, é o todos comem e bebem num não distinguir de farneis, é o sentimento de pertença a espreitar no brilho dos olhos, é o todos juntos num só contentamento, é o gozo escorreito da liberdade a céu aberto. Um céu baixinho, veludo liso, onde rebrilham astros e estrelas nunca antes tão claramente vistos. É o soltar das gargantas e do riso. É o fado que se escoa de vozes abaritonadas não antes suspeitadas. São os versos e as redondilhas de que só se lembra a metade. É o fado e as cantigas à volta da fogueira.

Namibe, 22 Fev. 2009

Crónicas do deserto

Crónicas do deserto…. - 1º dia: o dia mais longo!

A concentração estava prevista para as 3h30 da madrugada de sábado, na praça 1º de Maio, em Luanda, embora a caravana viesse a ficar completa apenas em Viana, pelas 4h15 da manhã, ou melhor, da noite porque o sol ainda não era nascido. Assim, 28 “expedicionários”, distribuídos por 9 viaturas mais ou menos todo-o-terreno, adiante se verificará que nem todas aguentaram o terreno, abalaram alegremente rumo ao destino programado, Lubango, sem suspeitarem que iriam cumprir um programinha um tanto diferente. O que, atalhando, acabou por ser o dia das picadas longas, mais para uns do que para outros, mas todos tiveram direito a participar na maratona, a evocar a conhecida cinéfila, “os carros também se abatem”, sendo que alguns tripulantes até foram “abatidos” nos entrementes. Para que conste, a primeira baixa, por avaria mecânica, aconteceu logo no período da manhã, um carro e três ocupantes tiveram de volver a Luanda. Ao almoço marcado no Huambo não compareceram outros dois, cuja viatura, algures abalroada pelo desatino de um camionista em trajectória de colisão, se despistou, tombou e capotou. Felizmente sem danos pessoais!

Voltemos aos 28 da partida que se iriam soltar em animado, e cheio de genica, pequeno almoço ao ar livre, no Dondo, sob a vigilância tutelar da portentosa acácia aparentada que domina o largo central da vila, junto às margens do Kuanza, piquenique abrilhantado por ritmos kizombeiros debitados pelo que se viria a designar carro-de-som. Olá!

Abastecimentos concluídos, viaturas inclusive, ao romper das 7h00 a caravana fez-se de novo à estrada com destino ao Huambo, cerca de 470 km mais abaixo. Estavam feitos à volta de 200km em duas horas de viagem. Até aqui ainda vai de feição medir o tempo e a estrada porque mais adiante outras considerações se alevantarão, como se há-de ver. Para já podemos ver nove “jipes” de cores e feitios diferentes em ligeiríssima rodagem, não sem alguns divertidos e bem dispostos remoques ao piloto-chefe-da-caravana , “ o engenheiro se quiser ir sozinho….”, que é como quem diz, “faça favor, que a gente não tem pressa”, até ao primeiro desentorpecer de pernas, por alturas da aldeia do Catoto, onde entre risos, ritmos e gingarias foi introduzida a gajaja, novidade para quase todos, pequeno e apaladado frutinho amarelo que um espantado menino vendia na beira da estrada. A bem dizer foi por aqui que se deu a primeira baixa, ainda não eram 8 da manhã.

Segue a excursão e segue a magnífica paisagem que se vai alterando à medida que se avança para o planalto central. Saem de cena os embondeiros, a vegetação da savana vai ficando espessa, enovelada em arrebiques de verdes, os afloramentos rochosos, e caprichosos, começam a marcar a linha do horizonte, o ar a rarefazer-se em alturas, e vão ficando pelo caminho lugarejos de cubatas e topónimos curiosos, aldeia da Pedra Escrita e outros não registados. A pretexto de um café, paragem na Kibala, e já eram feitos mais cerca de 160 km dos já anunciados 470 até ao Huambo, terrinha luminosa e simpática emoldurada por majestosa penedia que seguiria de perto e altaneira, e a cada passo mais extravagante no capricho das formas e dos bicos, a estrada até ao Huambo, a cidade do planalto, a 2600m de altitude, que nos haveria de dar de almoço uma suculenta e sápida caldeirada de cabrito, à moda da terra, num restaurantezinho vindo do tempo colonial, de muitas memórias e saudade, soube-se, para quem por ali esmoeu dias da juventude, e que a alguns dos comensais, bem amesendados, suscitaria comentários do tipo “ o cabrito ainda tinha pêlos”, e pois pudera, se tivesse escamas é que seria de estranhar… E o pior seria que tão cedo, mal sabiam, não se poria o dente em iguaria que se lhe equivalesse, e se haveria de brindar à sopita rala de couves que alta noite e maior cansaço nos aguardava no pretensioso “hotel & lodge”, verdadeiro desperdício de oportunidade e da arte de bem servir, que nos iria acomodar, sem água e mais uns senãos, por algumas horas ,já entrado o 2º dia de viagem.

De novo feitos à estrada, o combustível a fazer-se pouco, e mais poucos ainda os postos de abastecimento abastecidos, paragem técnica numa bombazita em cus-de-judas enxameada de motoretas e bidões amarelos, enfileirados no terreiro ao sol, que pacificamente dão a vez aos afobados jipes excursionistas. Já Wako Kungo, a famosa aldeia agrícola onde um completo projecto israelita semeou kibutzs que viriam a gerar importantes unidades da produção nacional, 400km rodados, mais coisa menos coisa, e nova paragem técnica, em Águas Quentes, onde a nascente se encontrou destruída (??!!), no Alto Hama, desta vez para abastecimento de frutas; vendedeiras de beira de estrada, mulheres, meninas e meninos, alguns de mama, num alvoroço garrido de panos, alguidares e tigelas, e tagarelice de “pátrãao, ámiiiga, côompra, lêevaa”.

Da reconstrução anunciada da cidade do Huambo colhe-se bom proveito na ampla praça central ajardinada e ornada com pérgulas, esculturas e repuxos, bordejada por espaçosos, e pavimentados, passeios e avenidas, e rematada por esquadria de bem recuperados edifícios de traça colonial. No mais o casco urbano promete, e em igualmente recuperado há-de ser digno de visita.

Saindo do Huambo , a bela paisagem do planalto remira-se na tira de asfalto até à Caála, a partir donde a jornada será por desvios e picadas até quase à chegada ao Lubango, na Huíla, a cerca de 400km e 6 horas de viagem, a correr bem. Sucedem-se as curvas e os desvãos, os solavancos e os sacolejos, efeito picadora accionado, atravessam-se pontes impensáveis num ranger e saltar de tabuinhas, as objectivas vão disparando num registo de fotos de pasmar, e pasmados nós também, até que o imponderável acontece: uma das viaturas não resiste ao massacre dos amortecedores e afocinha; dali não sai, dali ninguém a tira; o que a avaliar pelas condições envolventes corria sérios riscos de ser levado à letra. Foi por pouco, ufff…..

Naquele fim-de-mundo, onde o diabo perdeu as botas, nem apoio nem recurso, nem rede de telemóvel, apenas uns intrigados e curiosos habitantes dum kimbo desgarrado, as crianças apinhadas num só espanto, as mulheres a fazer de conta no pasmo e os homens a darem um ar de sua graça, comme il faut, e a avisarem que oficina só no município mais próximo, já ali, a kilómetros de distancia, e de impotência, que de nada a afoiteza dos técnicos de serviço, e do carro de apoio, podia valer. Conversa entaramelada com os simpáticos indígenas, debicando sandes e palpites, a noite a anunciar-se num impressionante céu de borrasca, enquanto um jipe já partira em busca de reboque ou oficina. Eis senão quando, no meio do nada, surge rodando pesada e desconjuntadamente um porta-máquinas, uma zorra mesmo a propósito. Encetadas curtas negociações com o solitário motorista, em penoso trânsito para o Lubango, de pronto o carro acidentado é montado em cima do atrelado que, uma vez aprontado, também de pronto se revela avariado, “desamortecido”. Donde, bem se diz que uma desgraça nunca vem só. Mas também se diz que não há mal que nunca acabe, e disso se encarregaram os especialistas da caravana, engenheirando ali mesmo a avaria. E era já noite feita quando o cortejo se pôs de novo em marcha rumo ao estaleiro mais próximo, a uns bons quilómetros de distância. E quis a sorte que tal houvesse, um posto avançado de empresa de obras públicas conhecida, porque a ela ligado um dos expedicionários, pasme-se!, onde a viatura seria deixada em guarda e repouso. Repouso dela porque o nosso, grupo do carro acidentado e acompanhantes, ainda andaria muito arredado e custoso. Enquanto tudo isto, a caravana desmembrou-se, seguiram viagem os demais, e tarde baldadamente se fazia.

Nas proximidades da quase recta de 90 km de asfalto que leva à cidade foi um desatino na noite de breu, entretanto raios e coriscos, sinalização nem vê-la, e a entrada para a estrada do Lubango disfarçada de barrancos e veredas, a tardar. E finalmente vislumbrada, os corpos entorpecidos pelo sacolejar de horas e cansaços, ala que se faz tarde, só a ideia de um banho quente e retemperador anima as almas e os aceleradores. O “hotel & lodge” não se mostrou à altura. Eram quase 3h30 horas da manhã do segundo dia. Estavam cumpridas as primeiras 24 horas.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Preparando o raide ao deserto do Namibe

O encontro foi marcado em Sangano, com almoço no “Careca”, bar da praia. O pretexto, se pretexto preciso fosse para rumar à beira-mar, era preparar a expedição ao deserto do Namibe, designação talvez pomposa para a passeata que se avizinhava e a que o empenhado grupo organizador, e isto sim é exagero porque, ao que sei, são apenas duas pessoas a trabalhar, deu o nome de “ 1º raide deserto do Namibe”*. Dos dois “carolas”, ambos de lusa nacionalidade, um é angolano de nascimento, de pátria e de coração, apaixonado pela terra e pelas gentes, capaz de galgar estradas e picadas, sobretudo picadas, prefere, em busca de um naco de paisagem num recanto da natureza. E fá-lo com tal alegria e afinco que arrasta outros, porventura menos afoitos, na corrida. Neste caso deu em raide. E vão fazer-se à estrada mais de trinta patrícios, distribuídos por doze “jipes”. Não fica nada mal chamar-lhe raide….

A manhã foi escorrendo mansa na extensão do areal, a caminhada solta à borda-d’água, a cada passo mar adentro, com modos, que mesmo se se não mostra alteroso não é para brincadeiras, é senhor de respeito, a água a refrescar, sem arrepiar, os corpos espevitados pelo sol, senhor de larguezas, a espraiar-se despudoradamente sobre a praia. Sem sombra nem abrigo, larga faixa de areias claras à beira-mar estendida.

A dado trecho, lá para os lados do “Careca”, a aldeia dos pescadores , casas-cubatas colmadas, e estendais de seca do peixe, entrincheiradas por entre palmeiras e arbustos, vai-se desamodorrando das lides caseiras e vai dando à praia garridice de mulheres e revoadas de putos, seminus, porque à praia começam a dar os barcos saídos cedo para a faina. Os homens puxam os barcos, e todos ajudam, amanham o peixe logo ali e com poucas palavras, compenetrados no seu labor, vão fazendo o preço ao peixe que grupos de veraneantes se aprestam a querer comprar. Quando se avista o barco a chegar é um vê-se-te-avias de pretendentes, malas térmicas acauteladas, a espreitar o bojo atascado de peixes, a pasmar pelos tamanhos e variedade, a propôr a compra de ocasião, e os homens, os pescadores, como se não fosse nada com eles, vão fazendo o negócio. E bom negócio faz quem compra, ora bem, que peixe assim tão fresco e tão à mão não é oportunidade que se desperdice; em Luanda, se se lhe chegar, há-de custar talvez quatro ou cinco vezes mais. Alguém ganhará com isso que não o pescador.

Enquanto a azáfama de chega e puxa barco, mira e compra peixe, todos aparentemente se amontoam, turistas e nativos, mas o certo é que novidade é para os que chegam, porque os outros, os habitantes da aldeia, não parecem minimamente afectados pelo reboliço, dão-se à rotina do trabalho, reservados e indiferentes, como senhores do sítio, que o são: na praia nascem, crescem e vivem, e, se não no mar, morrem. Dos que chegam a banhos e partem ao entardecer observam os gestos e os costumes, de soslaio, sem se darem por achados. Gente com dignidade.

Chegada a hora do almoço, o sol a pino a esbrasear tudo e todos, a sede aperta e até já se come com os olhos. Os petiscos amariscados aprumam-se na mesa enquanto se aguarda o misto de peixe grelhado: lagosta, linguado, corvina, garoupa, de tudo um pouco e a contento dos gostos. De caminho vai-se apalavrando a viagem, acertam-se pormenores, e os chamados chefes de viatura, os homens desta faina, previnem-se com mais uma cópia do road-book, que a viagem é dura, impõe-se o respeito das regras , e não pode haver desculpas por alegado desconhecimento do acordado e estipulado. Está tudo escrito, e à disposição dos excursionistas, na brochura “ 1º RAIDE Edifer Angola”*, também acessível em http://ediferangolatt.blogspot.com/.

Para já está prevista a partida no próximo sábado, dia 21 , às 3h30, concentração no Largo 1º de Maio, em Luanda; almoço no Huambo e dormida no Lubango. O dia promete e os que se lhe seguem não lhe ficam atrás. Que a alegria e a boa disposição acompanhem a jornada. Que o lavar de olhos das lonjuras e o desenxovalhar de alma da beleza das paisagens engulam a poeira, o calor e o cansaço. Que do raide nos fique um saber a pouco e um querer mais.

Luanda, 19 Fevereiro 2009

*“ 1º RAIDE Edifer - Angola, Deserto do Namibe, 21 a 24 Fevereiro 2009”

terça-feira, 3 de março de 2009

Barra do Dande

Aqui de Luanda, 2ª feira, 22 set. 2008


A semana passada decorreu sem novidades. Mantiveram-se os repetidos apagões, os arranques do estrepitoso gerador, as falhas da net - e p'ra melhorar a situação a assinatura doméstica tinha expirado, sem aviso....; " o cliente é que tem de estar atento", disseram-me na loja da movinet; e está certo, cada um deve saber o que tem para pagar e aguardar, calmamente, que o serviço não falhe.... vou aprendendo -, os amuos do meu portátil com o modem caseiro, a exasperante lentidão da e-navegação, etc., etc. Enfim, estou mesmo em fase de instalação. E não sei durante quanto tempo vou continuar... mas continuo a gostar disto. Ainda não caí abaixo do encantamento.

Agora vamos às peripécias mais picantes: sábado houve necessidade de ir ao escritório, em Cacuaco, ao fim da manhã, e eu tomei boleia. Não era suposto haver tráfego, a viagem seria coisa de 20 - 30 minutos, até aproveitava para aceder à net em boas condições; tudo a contento....
Eis senão quando, a meio caminho, dá-se de caras com o trânsito embarrilado; devia ser algum entupimento de ocasião, habitual, nada de novo.... Formam-se filas compactas, fura daqui, esquiva por ali, mas acabámos por ficar completamente parados e entalados entre o murete dos terrenos do musseque , o famoso bairro da Boa-Vista, salvo seja, zona de pobreza extrema e de marginalidades de todo o tipo. E eu ali fiquei, sem me incomodar muito com a inusitada paragem, a observar tudo com muita atenção: as brincadeiras pobres das crianças rotas e rabinas, o rodopiar de gentes morro abaixo morro acima. O muceque estende-se pelos morros que ladeiam a estrada; do outro lado fica o mar e uma espantosa paisagem, a tal boa vista, já se vê... Vão mulheres, raparigas e meninas ligeiras escarpa acima com vasilhas de plástico - bidões e bacias muito coloridos que poderão pesar, disseram-me, mais de 30 quilos, quando cheios!! - à cabeça. Carregam água para todos os consumos. Há pontos de distribuição de água ao longo da estrada, apenas, logo, tem de ser carregada até às "casas", e isso é trabalho de mulher.
Rematando, cerca de 2 horas depois, e entaladinhos no mesmíssimo sítio, abeiraramm-se do carro três putos que começaram a arengar e a gesticular, narizes colados aos vidros. Espantada com o dislate perguntei o que é que lhes estaria a dar e o meu companheiro de infortúnio, calmamente, no mesmo tom em que diria "está a chover lá fora", respondeu " os putos estão a ver o que há dentro do carro para roubar". Pormenor importante: é regra de ouro andar sempre com os carros completamente trancados, vidros, portas, tudo. Nem tive tempo para me espantar porque os putos desataramm a dar murros nos vidros, num ápice apanhavam garrafas do chão e tentavam partir os vidros. O carro não tinha como se mover, resta acelerar, fazer ruído, businar sem parar.... De repente, um indivíduo que passava no outro lado da rua correu em direcção aos putos, furioso, e eles fugiram, sem mais. Ficaram a vigiar de cima, encarrapitados na escarpa. O sujeito ainda se ocupou a fazer com que os carros das filas exteriores se movimentassem o suficiente para que o nosso carro se pudesse "desentalar" e passar para o lado de fora. Feito isto, aceitou os nossos agradecimentos como se não fosse nada, cortês e simpático, e seguiu o seu caminho. Era um simples transeunte de ocasião, muito seguramente habitante do musseque, angolano no trato e no agir, indignado com a tentativa de assalto que estava a acontecer, mesmo ali. Muita gente nos carros próximos se terá dado conta do que se estava a passar, mas ninguém reagiu. E, está bom de ver, demos meia volta e regressámos a casa. Com mais uma aventura para contar.

Domingo, voltámos a sair com amigos locais, como nós expatriados, que é como aqui se designam os imigrantes , rumo à praia. Ir à praia para nós significa descoberta, caminhada, almoço nas barraquinhas de beira-mar, ou piquenique se nada houver por perto.
Desta feita, fomos até à Barra do Dande, praia magnífica, areias claras a perder de vista, ninguém, coqueiros e palmeiras a bordejar, pequeno resort já instalado -os bungallows, casinhas de construção tradicional, colmadas -, restaurante e bar sobre a praia, serviço simpátido e afável, o sorriso fácil e espontâneo, " bom dia sím, m'nha senhôra, obrigaado: por favô, podi entrá, podi vê; teja à vontade; com licênça, obrigaado"; é assim!
Seguimos viagem para norte, direcção Ambriz, e por picadas e veredas arribámos a outra praia, enorme, selvagem, virgem, nem há pegadas de gente.... Há coqueiros, palmeiras, areia fina, conchas e búzios, mar sereno, água a convidar ao banho.... Duas horas e seis quilómetros , ou mais, depois estávamos de volta aos carros, a piquenicar. E já por lá andava alguém a preparar a temporada, mais um aldeamento turístico a nascer e, " quando vier o bom tempo, dentro de um mês, já temos onde se possa comer e ficar", assegurava o dono do empreendimento. Pede-nos que passemos palavra, e dá-nos o número de contacto para lhe ligarmos quando ali quisermos voltar. E espera que voltemos.
O sítio é lindo, no meio do nada, por perto só alguma pequena aldeia, que nem se avista; só avistámos gentes, mulheres e crianças junto dum riacho, que nos saúdam à passagem, e os putos desatam a bater palmas.... só visto e vivido!!!

No regresso, outro percurso, outras picadas e estradas asfaltadinhas de fresco , aldeias e gentes perdidas na paisagem imensa, já a verdejar, "cus de judas" onde o imbondeiro, árvore majestosa, é rei, múcuas-pingentes, ainda sem folhas, agora parecem árvores de natal , troncos e ramos esbranquiçados - múcua é o fruto do imbomdeiro, oblongo e enorme, pendurado em lianas que saem dos ramos.