quarta-feira, 25 de março de 2009

Crónicas do deserto

Crónicas do deserto… - 2º dia: Fados e cantigas à volta da fogueira.


Já a alvorada se derretia nos luzeiros da manhã quando a caravana se recompôs dos desencontrados imprevistos da véspera. Era a serra da Leba a desafiar tudo e todos num cenário de cortar a respiração, tal a imponência, tal a majestade, tal a beleza, tal a justeza dos tamanhos e proporções. É a mãe natureza que nos confronta com a nossa pequenez. Sem apelo nem agravo.

Magnânima, a serra se nos desnuda em requebros e curvas voluptuosas , na cabeça a falésia emoldurada em geometrias de tons ocres e pastel , o torso reclinado em tufos encaracolados de verdes em matizes, aconchegado entre os picos violáceos que de largo se recortam na linha que separa o céu, se derramando em sustenidos de barrancos e ravinas até se aninhar no regaço do Namibe, terra dos mucubais, homens e mulheres trajando panos e adereços, os troncos nus, olhos cintilantes nos rostos de exótica beleza, posam para as fotos, dá-se-lhes dinheiro, mas são eles quem de verdade compra; compram o nosso civilizado espanto. Adiante temos encontro marcado com o Deserto, o senhor que a Leba recebe e acalenta. Numa recatada intimidade que os nossos assarapantados olhos apenas adivinham.

A estrada, qual fita de nastro a bordar ziguezagues na paisagem, esgueira-se formosa e segura até à cidade, a do Namibe, moçoila fresca e de cara lavada debruçada sobre a baía, e também os navios no porto, onde os barcos e pescadores, onde as areias brancas e cabriolas de meninos, onde o passeio marinho se afeita ao mar que mais parece um manto de crépon azul estiraçado. Aqui haveremos de voltar com maior ripanço.

Às portas do deserto, por alturas do plateau que se enfileira ao longe, a pista vai rasgando as cercanias, e tira-se tempo para o “garimpo” de ágatas e jaspes, que os mais entendidos catrapiscam para surpresa e gáudio dos demais.
Enquanto isso, a caravana vai rolando, a paisagem vai-se desfraldando em austeridades de viços e plantas, e há cubatas e palhotas que se avizinham e gente que se adivinha, e os redondos sensuais das dunas que se deitam p’ras bandas do mar, e os esculpidos nos rochedos, variados na forma, no tamanho e na cor. Sempre pasmosos! E lá está o território da famosa e mal encarada welwitschia, espécie de fóssil vivo, planta apenas existente no deserto do Namibe. Das welwitschias diz-se, e não será o caso, que são carnívoras, “comem” insectos, mas aquelas aparentes bocarras escancaradas em beiços negros que nem borracha de pneus mais parecem capazes de comer uns bons bifes. Fica a piada, espicaço de imaginação.

A aguardada surpresa do oásis vem-nos ao caminho, e mesmo assim o pasmo, que os caprichos da natureza póem de rasto os humanos arrebites, é o rio e a lagoa que refrescam a frondosa vegetação onde se abrigam as machambas dos mucubais ali acantonados em palhotas bem organizadas no terreno. Sem eufemismos ou figuras de estilo , em bom rigor e à letra, é o viver-no-meio-do-nada! Os mucubais aqui vivem e pastoreiam o seu gado, agarrados à sua terra e às suas tradições. E à nossa perplexidade dizem nada.

Pelas 6h da tarde o acampamento está montado na largueza do chão só antes pisado pelas pachorrentas vacas, quiçá outros bichos, que se nos acercam impávidas e serenas, e por ali se hão-de acomodar, que nem encenação de presépio, até à manhã do dia seguinte. Por enquanto carros e tendas se arredondam à volta da fogueira que se há-de acender. Saem uns a apanhar lenha, outros se quedam só embasbacados, a mirar os longes e os ruídos do silêncio que se impôem O sol vai-se afastando em pinceladas de cor e pasmo. O ar cálido e transparente vai roçagando as almas e os corpos. Em breve um fogo se incendeia entre um rodado de pedras.
São as febras no braseiro, é o tacho do macarrão que se intromete, é o todos comem e bebem num não distinguir de farneis, é o sentimento de pertença a espreitar no brilho dos olhos, é o todos juntos num só contentamento, é o gozo escorreito da liberdade a céu aberto. Um céu baixinho, veludo liso, onde rebrilham astros e estrelas nunca antes tão claramente vistos. É o soltar das gargantas e do riso. É o fado que se escoa de vozes abaritonadas não antes suspeitadas. São os versos e as redondilhas de que só se lembra a metade. É o fado e as cantigas à volta da fogueira.

Namibe, 22 Fev. 2009

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