quarta-feira, 22 de abril de 2009

As pedras Negras de Pungo Andongo

A excursão de 4 jipes saiu pelas 6h30 do ponto de encontro combinado, Viana, a cerca de 20km de Luanda, para onde tínhamos arrancado cerca de meia hora antes, e quis o acaso que o trânsito estivesse maneirinho, porque o normal seria levar 1 hora, se não mais, razão por que foi saltar da cama às 5 horinhas, o sol a nascer, e zarpar para juntar ao grupo, que a viagem era para durar, o dia entretanto ia alto e o calor também a subir de tom. Destino da expedição, Pedras Negras de Pungo Andongo, a coisa de 350km de Luanda, rumando a leste, para o interior, província de Malanje, terra de renomadas belezas naturais.
A fita de asfalto, posta de fresco, vai-se esticando, às lombinhas, savana fora rumo ao planalto norte, também chamado de Malanje, e depressa nos há-de sair ao caminho a floresta malanjina. Chemin faisant, província do Kuanza –Norte, árvores, arbustos, acácias muitas, em flor, corolas fulvas a pintalgar os verdes ton-sur-ton, esguias no tronco e a terminar em pompons farfalhudos, assim a lembrar as carreirinhas de bouquets nas floristas . Até à primeira paragem, no Dondo, cidadezinha, passe o eufemismo, simplória e simpática, gente singela , pouca roupa e chinelo no pé, pobreza e dignidade q. b., acocorada à beira do Kuanza que aqui se espreguiça em largueza, e na Lagoa, e o povo da outra banda chega de barco puxado a remo, tudo no maior remanso. Bem ao lado da estrada, na margem do rio, em terreiro amplo e desafogado, ergue-se soberba, aperaltada em missangas de florinhas rosa- forte, a mostrar grandezas, uma árvore imponente, parente de acácia, a dizer que nesta terra a natureza não é dada a mínguas. E Luanda tinha ficado quase 2 horas e 200kms atrás.
De novo a excursão se fez à estrada, o sol a dardejar lampejos, jipes cerrados no ar condicionado, a caminho das Pedras Negras e dos alvores do planalto. Agora vêm ao caminho bosques mais cerrados, mas sempre a lonjura a desvairar-nos os olhos, o céu baixinho e esticado por cima dos montes que lá longe vão emoldurando a paisagem. Montes a perder o ar macho dos tempos do cacimbo, escuros e de rocha à vista, para se travestirem de montanhas trajadas de verdes gaiteiros, umas mais senhoras, lisas e abonadas, outras mais menineiras com puxados de carrapitos nas carapinhas, todas a dar ares de fofas e macias no acolchoado do coberto florestal. E de repente, como quem diz, porque umas tantas horas e mais de 350 kms já eram feitos, e da estrada já se tinha passado para a picada, esta sem grandes asperezas, só o efeito picadora moulinex activado, erguem-se os primeiros avisos das Pedras, rochas de conglomerado gigantes a imitar a tez antracite dos granitos, espetadas a apontar p’ro alto em formas imprevisiveis e atrevidas. A picada desagua na aldeia de Pungo Andongo, lugarejo perdido do mundo, muito aprumadinho na pintura fresca e viva das fachadas dos inesperados edifícios oficiais, e só, pois ele é escola primária + outra com ar de secundária ou afim, posto de polícia, centro médico, sede comuna ou coisa parecida, igrejinha paroquial incluída, e gente, aldeia, kimbo ou quejando, nada; só as ruínas das casinhas de adobes do povoado de antes da guerra. Tudo isto literalmente aninhado no regaço das famosas pedras, as Negras, majestosas, altaneiras, emproadas, matronas de écharpes e pregadeiras verdes sobre o traje escuro, enfileiradas, a olhar-nos d’alto, displicentemente. E a gente embasbacada, a balbuciar espantos, lá se atreve a amarinhar a escarpa para escancarar de pasmo uma vez no topo, que se a subida é de repuxar os bofes, a vista é de cortar a respiração! O sol a pique, de torrar mioleiras, o ar espesso, aveludado, um silêncio de melodia, e nem um pássaro a picar no horizonte imenso, redondo e a bater num céu que mal se percebe onde começa ou acaba, luz e cores contrastadas, terra de ninguém a perder de vista. Só o rio Kuanza se esgueira lá ao longe em curvas voluptuosas que ora aparecem ora se escapam. E nada nem ninguém, nem do pitoresco Pungo há vislumbre, fica esborrachadito num recesso. Só mesmo uns novelinhos de poeira muito esbatidos sinalizam as picadas, que não se percebem, e dão sinal de que há gente nas redondezas. E gente haverá por certo, dispersa, capaz de engolir distâncias como só os africanos sabem, pois Pungo Andongo foi retraçado no mapa; esta aldeia centro de serviços alguém há-de servir.
O regresso foi por N’Dalatando, antiga Salazar, cidade capital da província do Kuanza-Norte, estropiada de guerra, escanzelada, marcas de balas e de destruição escancaradas nos edifícios outrora dignos de registo, o estendal dos telhados de zinco pardacento a dar conta do assentamento do vasto muceque, também ele pardacento, e pobre. Num cafézinho no centro, restaurante ritz na tabuleta, o café era feito fresquinho na ocasião: nescafé em frasco e água quente num termo; na casa de banho, sem porta interior, um balde e um jarrinho para tirar água; ao balcão uma jovem meio atrapalhada e tímida, sorriso franco, simpatia entrançada num caprichoso penteado afro, que na saída a todos desejou boa viagem, e agradeceu a visita. Só mesmo este povo!
Luanda a cerca de 250 kms, estrada asfaltada em serventia, mas o gosto pela picada se alevantou, e esse foi o caminho escolhido, “estraada bôa siim”, assim nos foi dito, a rasgar de canto a floresta do Mayombe, floresta tropical , densa, espécies autóctones de grande porte e beleza, as fitas das lianas a esvoaçarem ao vento nas bordas do carreiro, os raios de sol oblíquos a tracejarem reverberações na poeira revirada em espirais de luz e sombra, como que a psicadelizar a iluminação natural. Rio atravessado a vau, a ponte está em (re)construção, sem contar umas tantas pontes metálicas, militares, mais modestas mas indispensáveis para permitir a travessia, e um grupo de mulheres, corpos negros reluzentes, aí a tomar banho, surpreendidas com a invasão dos excursionistas mas tranquilas, puxaram dos panos assim como quem não quer a coisa, e lá continuaram os ritos da higiene. Gente caminhando picada fora, ora um, ora outro, ora grupos qdo mais próxima alguma sanzala, sempre a saudação, mão no ar, sorriso rasgado, chilrear animado da criançada, que carros, grandes, logo quatro, e gente branca embasbacada era acontecimento pouco visto, deu para perceber. Numa das paragens para fotos, junto a uma aldeia, veio metade do povoado apreciar o espectáculo e os adeuses foram de grande animação.
Da guerra restam marcas, há restos de balas e de outras munições nos sítios mais inesperados. O inimaginável são os tanques, os canhões e demais artilharia pesada na beira de estrada, quase nos quintais, encarrapitados de patas p’ro ar, amolgados que nem brinquedos atirados por criança birrenta. Como inimaginável é a certeza de que estas paragens, estas estradas, estas picadas, estes matos onde estão a renascer aldeias e kimbos foi lavra de minas mortíferas e de má memória. Esta guerra andou por aqui, selvática, cega e impiedosa, até há pouco mais de seis anos. É muito pouco tempo.
Luanda, 2 Dezembro 2008

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