quarta-feira, 22 de abril de 2009

Março, mês das mulheres....

Em Angola Março é um mês dedicado às mulheres. A 2 de março celebra-se o dia da mulher angolana. A 8, obviamente, celebra-se o dia internacional da mulher, e é feriado nacional.
Se o tema da violência doméstica já era objecto de discussão na opinião pública, este mês tem -se-lhe dedicado uma particular atenção, quer pelo tratamento de matérias específicas na imprensa falada e escrita, quer pelas muitas iniciativas que aqui e ali vão sendo anunciadas.


Ora se há coisa de que já me tinha apercebido nestes curtos meses de estadia é que a sociedade angolana é profundamente falocrática e os tiques de machismo, não o ibérico, topam-se a olho nu. Não precisei de me esmerar muito na observação do que me vai passando por perto, nas conversas com angolanos, inclusive patrícios com dupla nacionalidade aqui radicados há anos, no comportamento do cidadão comum nos espaços públicos, etc. Pressente-se uma larvar , inconsciente?, desvalorização da mulher: elas são sempre objectos de consumo, as mais das vezes dispendiosos e que dão muita canseira, as propaladas várias mulheres a que cada homem tem direito, e de que se ufana, e que, convenhamos, é um estilo diferente do costumeiro uso, ou pretensão de, dos escalpes à cintura que o famoso , e ridículo, macho latino, e derivados, faz, ou ainda vai fazendo porque já não é o que era, as mulheres emancipadas estão-lhe a acabar com a raça, mas voltando atrás, as mulheres de colecção parecem (??!!!) não se dar muito mal com isso. O casamento “de papel passado” é acontecimento social relevante, a atestá-lo os aparatosos cortejos nupciais, com muito espalhafato e muitos figurantes, mas a condição de “mulher de” em regime de acasalamento não se me afigura socialmente desvalorizante. Ser a outra, que até é letra de canção em voga, confere estatuto enquanto mãe dos filhos de. O homem angolano faz questão de se afirmar pelo número de filhos, e não os ter, isso sim, é penalizador em termos sociais. Logo, muitos filhos, várias mulheres, famílias numerosas e alargadas, não aparente conflitualidade entre os diferentes núcleos familiares, tudo isto perpassa aos olhos de quem observa sem quaisquer instrumentos de análise mais fina. É o que parece ser. E empiricamente se atribui a uma matriz cultural africana e, em Angola, também às consequências da guerra, elevado número de homens mortos, excedente de mulheres com fraca inserção no mercado de trabalho, economicamente dependentes, que assumem sem constrangimento o seu papel de reprodutoras a troco de alguma estabilidade, e reconhecimento, social. Dependendo do grupo social a que pertencem porque, numa sociedade estratificada como a angolana, na base da pirâmide as famílias alargadas assentam cada vez mais em núcleos monoparentais. São as mulheres que sustentam os filhos, os netos, os pais desapareceram ou pura e simplesmente abandonaram o lar; ou então decidiram não reconhecer a paternidade e não pagar pensão de alimentos. Para além de que as gravidezes precoces continuam a ser flagelo social. Meninas com vidas interrompidas, que abandonam os estudos, e cujo destino mais provável é a “zunga”, assim chamada a venda ambulante, e a reprodução incessante do ciclo de pobreza: a zungueira, ou quitandeira, está condenada a uma vida dura, levanta-se antes da madrugada, carrega pesos impensáveis, percorre as ruas da cidade até ao anoitecer, garante o sustento da casa e dos filhos, e quantas vezes do homem, quando o há, desempregado ou sem vocação para o emprego. É mulher guerreira, sobrevive na selva de asfalto, carrega o filho pequeno às costas, foge da polícia, corre para apanhar o “táxi”, o candongueiro de todas as incertezas e perigos, chega a casa noite dentro, leva pancada, se há homem, e mesmo se não há vai-se perdendo nos sonhos e e nas promessas da vida, e os filhos a aumentar. Ainda esta manhã ouvia numa entrevista de rádio, “zungueira, 23 anos, quatro filhos, o esposo motorista” mas…. não percebi bem, talvez com alergia ao volante… ela levanta-se às 3 horas da manhã, etc., etc., etc.
Neste contexto, e dada a minha mania antropológica de chegar, observar e tentar entender, a actividade das organizações de mulheres despertava-me grande curiosidade, ia lendo e ouvindo a respeito, porém sem qualquer relação de proximidade até que, inesperadamente, me foi oferecido um convite para participar numa iniciativa da OMA, organização das mulheres angolanas, do MPLA, comemorativa do dia Internacional da Mulher. Tratava-se de um almoço/convívio algures numa esplanada no centro de Luanda. À chegada, a senhora que me convidara mais três amigas e eu, fomos gentilmente recebidas à porta e encaminhadas para a mesa que nos foi destinada. Foi-nos indagada a nacionalidade. Nas mesas em redor havia já grupos de mulheres em amena cavaqueira, muitas trajando belíssimos estampados tradicionais, e os turbantes que não me cansava de mirar e remirar, havia alguns homens, poucos e meio enfiados, sabiam-se não vedetas,, contrariamente ao habitual, e a conversa ia fluindo descontraída. A dada altura vem alguém por entre as mesas, cumprimentando e saudando com um sorriso cúmplice as “camaradas e as irmãs” ali presentes, e indaguei quem era aquela simpática senhora, bonita figura de mulher, fina e elegante numa impecável túnica branca, ao que me responderam ser a “camarada Inga”. E, eis senão quando, fui abordada no sentido de ir ocupar a mesa principal, da secretária-geral da organização, porque portuguesa e porque a “camarada Inga” fazia gosto em juntar representantes de diferentes nacionalidades. Resolvido o embaraço que se me colocou face ao eventual abandono do grupo original, lá me fui juntar ao grupo na “mesa da presidência”, passe o exagero, onde, à excepção de uma senhora vietnamita que não falava outra língua que não a sua, e por isso não falava apenas sorria, a conversa ia rolando, de orelha a orelha, ao abrigo do som que se desprendia do palco. O almoço foi uma soberba mostra da culinária tradicional de diferentes províncias, pratos e sabores. Em rusga se ia à comida, o conjunto, que entretanto reconheci de renome, ia marcando o ritmo, e não demorou muito a, entre comes e intervalos, andar tudo num vai-de-roda, alegria solta, gargalhadas e gingar de corpos numa africana confraternização onde os desconhecidos se conhecem, não há barreiras nem peias de cortesia. Todas as mulheres que ali estavam eram amigas, cúmplices nos requebros da dança, no trautear de cânticos e dialectos, cor, raça, pátria, religião diluidos na magnificência dos trajes tradicionais e nos motejos de ocasião.
A dada altura fui solicitada para falar à imprensa, e de seguida apareceu-me a televisão pública angolana, TPA, e sem cerimónia a conversa escorreu animada, como animada se foi espreguiçando a tarde entre risos e cochichos e passos de dança. Um compromisso anterior fez-me sair da festa antes do fim, que se iria prolongar noite dentro, e as despedidas, só na medida da proximidade incontornável, foram ternurentas. Saí como quem vai-ali-e-vem-já, maravilhada com a mulherista festança.
Uns dias depois haveria de receber novo convite, desta vez directamente da OMA, a que não pude corresponder por imposição de indesejável, porém não desprezível, maleita bacteriana.
Da OMA ficou a promessa de novas oportunidades. A mim espicaçou-se-me a vontade de entrar mais fundo no quotidiano angolano, de espiolhar por dentro esta sociedade que me fascina e intriga. À vista desarmada as contradições são “mais que muitas”, mas….. o que se esconde por detrás deste jeito solto e despreocupado de viver? Que verdades e valores encerra esta cultura? Quero, tenho de, perceber.

Luanda, 24 Março 2009

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